A Simultaneidade no Tempo

Um daqueles grandes praticantes dos tempos antigos de certa feita disse a seguinte frase: "A simultaneidade no tempo se encontra no mais elevado cume das montanhas, e no mais profundo do oceano insondável, a simultaneidade no tempo é a forma de demônios e buddhas, a simultaneidade no tempo é o cajado de um monge, a simultaneidade é um hossu [abanador de moscas], a simultaneidade no tempo é uma pilastra redonda, a simultaneidade é uma lanterna de pedra, é fulano, é sicrano, é a terra e o céu."

Simultaneidade quer dizer que o tempo abarca toda existência; isto é, "o tempo é a existência, e a existência é o tempo." A forma de uma estátua de Buddha é a simultaneidade no tempo. O tempo é a natureza radiante de cada momento que se esvai; é o cotidiano no presente, agora. Não pode haver haver dúvidas que um dia contenha vinte e quatro horas, apesar de não temos sido nós mesmos que o calculamos assim. A mutabilidade do tempo é algo de auto-evidente, então não existe motivo algum para que disto duvidemos; mas isto não significa que saibamos exatamente o que venha a ser o tempo. Em geral, quando se duvida de alguma coisa, isto significa que aquilo ainda não foi completamente absorvido e compreendido, permanecendo sem solução até que mais tarde o resolvamos; mas mais tarde provavelmente as dúvidas mesmas já serão de uma natureza diferente. O processo de dúvida mesmo em cada caso, é constituído pelo tempo.

Tudo que existe, existe também dentro de nós mesmos. Cada coisa, cada ser neste mundo todo, nada mais é que o tempo. Nenhum objeto se coloca como obstáculo a nenhum outro objeto, nem pode o tempo jamais se opor a qualquer outro tempo. Assim sendo, se formarmos uma resolução determinada de ganharmos a compreensão completa, todo mundo também terá esta resolução ao mesmo tempo. Então, não existe qualquer diferença entre nossa mente e o tempo; estão ligados pela resolução de atingir a compreensão mais elevada. O mesmo vale para a prática e completude do Caminho. 

O mundo inteiro está incluso em nós mesmos. É este o princípio por trás que tudo no mundo nada mais é que o tempo. Cada instante de tempo cobre o mundo todo. Quando compreendemos este aspecto da simultaneidade no tempo, isto nada mais é que o começo de nossa prática e compreensão. Ao chegarmos neste ponto, podemos ter uma muito clara compreensão de toda e cada prática: um capim no prado, cada objeto, cada coisa viva que seja, não pode de forma alguma ser separada do tempo. O tempo inclui todos os seres e todos os mundos.

Pessoas comuns, completamente desligadas do buddhismo, pensam que a simultaneidade no tempo pode até se parecer com uma coisa demoníaca qualquer, e também pode se parecer ocasionalmente com um Buddha. Crêem tais pessoas que isto seria por exemplo como se a pessoa vivesse num vale, e em seguida a pessoa faz uma outra ação como atravessar o rio e subir a montanha para chegar a uma casa qualquer. Isto é, montanha e rio estão já no passado, deixados para trás, e não possuem nenhuma relação com a vida presente. Existe um abismo de tempo que os separa, como o céu está separado virtualmente da terra.

Contudo, isto não é o que ocorre absolutamente; ao atravessarmos o rio e subirmos a montanhas estamos no tempo. Não podemos em hipótese alguma nos separar do tempo. Quer isto dizer que, como não existe ir ou vir dentro daquilo que chamamos de tempo, quando atravessamos um rio e subimos a montanha estamos naquele momento existindo no presente eterno do tempo; e este tempo inclui em sua simultaneidade todo o tempo passado bem com o presente. Tanto o atravessar do rio, o subir da montanha, e o viver na casa coexistem, inter-relacionados, simultaneamente dentro do tempo. Demônios e buddhas são o tempo de ontem, uma imagem altaneira do Buddha é o tempo que vemos hoje. Aquele tempo que ontem havíamos provado, existe em nossa existência presente. Parece que o tempo está virando passado, mas este mesmo passado está sempre contido dentro do momento presente. É deste forma que o pinheiro é o tempo, bem como bambu, que também vem a ser tempo.

Contudo não devemos ficar achando que o tempo meramente se esvai; não devemos estudar apenas o aspecto passageiro do fenômeno do tempo. Se estivesse realmente apenas se escoando, haveria uma distinção entre nós mesmos e o tempo. Se pensarmos que o tempo é somente uma coisa que vai embora, e se esvai, não chegaremos jamais a esta simultaneidade do tempo. O significado central da simultaneidade do tempo é o seguinte: cada ser no mundo inteiro está ligado visceralmente um com o outro, e não pode jamais ser separado desta simultaneidade que é o tempo. O tempo é a simultaneidade, e desta forma é meu próprio tempo verdadeiro. Existe contudo este movimento do tempo já que ele se move de hoje para amanhã, de hoje para ontem, de ontem para hoje, de hoje para hoje e de amanhã para amanhã. Este movimento é a característica do tempo e o passado bem como o presente não podem ser duplicados. Mas Mestre Seigen é o tempo, Obaku também é o tempo, Kosei é tempo, Sekito é a simultaneidade no tempo. Já que nos encontramos dentro desta simultaneidade do tempo, também a prática e a compreensão são esta simultaneidade no tempo.

Porque o pensamento das pessoas que não possuem esta compreensão completa não se baseia num entendimento correto daquilo que é a simultaneidade no tempo, eles não podem jamais descobrir o que vem a ser o verdadeiro Dharma. O verdadeiro Dharma se encontra já dentro de cada um, mas eles não o estão percebendo. Este tipo de ignorância do que pode vir a ser a Lei do universo, causa seus sofrimentos contínuos, devido ao tipo de pensamento preconceituoso ao qual se acostumaram. Afora isto, este tipo de pessoas acham que o verdadeiro Dharma não se encontra neste momento presente ou dentro de si mesmos, e conseguem se convencer que não existe a mais remota possibilidade de se chegar a nenhum tipo de lei eterna ou perfeita. Contudo, consideremos que mesmo este ponto de vista deveras limitado, faz também integralmente parte da simultaneidade do tempo. Quem acha que não pode chegar jamais a um tipo de compreensão da realidade, deve urgentemente se inteirar deste fato.

Por exemplo, podemos calcular o tempo como manhã, tarde ou noite; mas estes nada mais são que momentos independentes, instantâneos da simultaneidade no tempo.

Tanto aqueles que são iluminados como aqueles que não o são, nada mais são que a simultaneidade no tempo. Demônios e buddhas são a simultaneidade no tempo. A verdade é que a simultaneidade no tempo abarca em si a todos os fenômenos. É a pura e total ação; ali estão ativos a resolução, a prática, a compreensão, e o desapego. Esta simultaneidade do presente eterno inclui e compreende em si todo o espaço sem limites; além disto nada mais existe.

Mesmo que dermos um passo em falso, ou percamos nosso Caminho temporariamente ainda assim estamos enraizados na simultaneidade do tempo, porque tanto antes como depois de temos perdido nosso caminho, estamos, naturalmente, dentro da simultaneidade do tempo. Tudo que é vivo tem sua raiz nesta simultaneidade do tempo. Não fiques achando, contudo, que este seja um conceito estável; a simultaneidade abrange todos os lapsos temporários. A maioria das pessoas acha que o tempo está passando sempre e não percebem que existe também um aspecto do tempo que não está passando. Perceber isto é compreender a simultaneidade do tempo; não perceber isto também é.

Entretanto, se não compreendermos esta simultaneidade do tempo, não podemos de fato estar nunca verdadeiramente desapegados e livres. Apesar de estarmos achando que nos conhecemos perfeitamente, na verdade é assaz difícil sabermos exatamente o que somos. Porque se um dia chegarmos a ter esta compreensão completa, então até mesmo estas idéias que nós temos sobre o Caminho do Buddha, a sabedoria, e o desapego, serão vistos pelo que são de fato: tentativos e eles mesmos também ilusórios.

Devemos nos lembrar contudo, que a simultaneidade do tempo não depende em nada de idéias; é de fato a vida realizada de um ser humano. Seres celestiais como deuses e anjos estão compreendidos dentro da simultaneidade do tempo. Todas as criaturas que existem em água e terra são esta simultaneidade do tempo, que existe continuamente se desenrolando em nossa experiência presente. Tudo existe dentro deste presente em nós mesmos. 

A simultaneidade no tempo não pode ser comparada com a chuva que é soprada daqui para ali por qualquer vento que apareça. A simultaneidade no tempo é o mundo inteiro agindo através de si mesmo. Considerem a seguinte ilustração: Quando se torna primavera em um lugar, conseqüentemente é primavera por toda parte nas redondezas. A primavera abarca a tudo. A primavera nada mais é que primavera; não pressupõe de forma nenhuma que exista um verão ou um inverno para que ela possa com isto existir. É apenas o acontecimento do vento e do sol da primavera. Assim também é a simultaneidade no tempo. Mas a simultaneidade no tempo nada tem a ver com a primavera; o que quero dizer é que a simultaneidade no tempo da primavera é a primavera.

Se não estudarmos o buddhismo de todo coração, ficaremos achando que a simultaneidade no tempo é algo localizado em um longínquo lugar, e que tudo fica buscando esta simultaneidade no tempo, e de vez em quando isto fica mudando daqui para ali. 

Certa vez o Grande Mestre Sekito Musai pediu por alguma razão que o Mestre Yakusan Kodo visitasse o Mestre Zen Daijaku. Yakusan perguntou a Daijaku, "Eu aprendi todos os conteúdos teóricos dos três veículos e das doze escolas completamente, mas ainda não conheço o espírito por trás dos sutras. Podes por favor me dar uma resposta de porque Bodhidharma chegou a vir para a China, da Índia?" Daijaku replicou, "Às vezes levantamos nossas sobrancelhas e piscamos, às vezes não o fazemos". Ao ouvir tal resposta, tão fora do comum, imediatamente Yakusan obteve a grande compreensão e disse, "Quando eu praticava com o Mestre Zen Sekito, não podia ainda compreender nada. Era como um mosquito tentando picar um búfalo de ferro".

Estes ditos de Daijaku são bastante diferentes daqueles das demais pessoas. Neste caso, olho e sobrancelha quer dizer montanha e oceano, porque quem possui este tipo de compreensão está totalmente harmonizado com a natureza. Se soerguem suas sobrancelhas, enxergam uma montanha, se piscam eles aprendem coisas sobre o oceano. Eles dominaram a verdade. Mas não fiques achando que tais ações sejam importantes; quer levantes tuas sobrancelhas ou não, nada, mas nada mesmo terá a ver com a verdade.

O que isto tudo quer dizer, é sempre a simultaneidade no tempo. A montanha é o tempo, o oceano é o tempo. Tanto a montanha como o oceano existem tão somente no presente. Se o tempo for destruído, também as montanhas e rios o serão. Desde este ponto de vista, as estrelas da manhã, buddhas, a sabedoria da compreensão completa, e a transmissão de mente para mente são animadas e vitalizadas pela simultaneidade no tempo. Se não houvesse esta simultaneidade no tempo, nada destas coisas poderia tomar lugar.

Um dia o Mestre Zen Kisei de Sekken, que era um descendente direto do Zen de Rinzai, e transmissor do Dharma de Shuzan, disse a sua comunidade de monges, "Às vezes as palavras superam suas origens na mente. Outras vezes há em que mente e palavras se auto-superam. E às vezes não se superam". Mente e palavras estão dentro desta simultaneidade no tempo. Superar e não-superar também estão dentro da simultaneidade no tempo. O futuro não virá jamais; o futuro já chegou! É como um burro e um cavalo: a mente não funciona e as palavras mesmo assim já chegaram; a mente já concluiu o que pensava, mas as palavras não podem sair. Assim é a simultaneidade no tempo. A mente é apenas a mente e as palavras apenas palavras: nada mais são que uma função da simultaneidade no tempo.

A penetração completa nesta questão da simultaneidade no tempo, só pode ser realizada dentro de nós mesmos. A penetração completa na simultaneidade do tempo é a ação total, que nada deixa para trás, gastando toda a energia que a pessoa pode despender naquela ocasião, ação que a tudo abrange. Para dar uma ilustração, direi o seguinte: Ao conhecer uma outra pessoa, primeiro eu a vejo como outra pessoa, depois como um ser humano como eu, e finalmente como alguém que nada mais é que a mesmíssima essência minha. Isto é a ação total. Se qualquer um destes estágios estivesse separados da simultaneidade no tempo, não poderiam tomar lugar. Desde o ponto de vista de uma pessoa que pratica o buddhismo, quando se diz "mente" isto mesmo quer dizer a simultaneidade no tempo, e neste momento é que se deve buscar o aparecimento daquilo que se conhece como Caminho do Buddha; já quando se diz "palavra" este é o exato momento em que se abre a porta da compreensão completa. 

Isto que foi dito acima são as palavras mesmas dos buddhas; o seguinte também é vital: "Palavras e mente estão entre aquilo que vem e que vai, que não vem nem vai; e também são a simultaneidade no tempo". É importantíssimo se compreender isto. Levantar as sobrancelhas ou piscar os olhos nada mais é que só meia simultaneidade no tempo, ou mesmo uma ilusão de simultaneidade no tempo. O começo da prática, a realização dentro da prática, e até mesmo não praticar nada é a simultaneidade no tempo.

Capítulo 16 do Shôbôgenzô de Dôgen Zenji (1200-1253).
Adaptado da tradução do monge Ryokyu Marcos Beltrão.

Leia nossos textos para sua evolução espiritual, eles são espirituais, ou uma sugestão de luz: leia um texto nosso semanalmente.

Conheça o texto: Como Evoluir Espiritualmente.

Voltar a Pagina Inicial                   Livro de Visitas