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Jûgyû-no-zu
As Dez Figuras do Apascentar do Boi
Entre as várias formulações dos níveis de realização do Zen,
nenhuma é mais amplamente conhecida do as Figuras do Apascentar do Boi, uma
seqüência de dez ilustrações com comentários em prosa e verso. É
provavelmente por causa da natureza sagrada do boi na antiga Índia que esse
animal veio a ser usado como símbolo da natureza primária do homem, ou
natureza búddhica.
Os desenhos originais e o comentário que os
acompanha são atribuídos a Kakuan Shien (Kuo-an Shih-juan), um mestre Zen
chinês do século XII, mas ele não foi o primeiro a ilustrar por meio de
figuras as sucessivas etapas da realização Zen. Existem versões mais
primitivas da quinta e oitava figuras, nas quais o boi branqueia
progressivamente e o último desenho é um círculo. Isso deixa subentendido
que a percepção da unidade (isto é, o apagamento de qualquer concepção de si
e do outro) era a meta final do Zen. Kakuan porém, julgando que isso estava
incompleto, acrescentou mais duas figuras além do círculo, para tornar claro
que o homem do Zen de mias elevado desenvolvimento espiritual vive no mundo
secular de forma e diversidade e se une com a máxima liberdade aos homens
comuns, inspirando-os, pela sua compaixão e irradiação, a andar pelo caminho
do buddha. Essa versão foi a mais largamente aceita no Japão e se revelou no
decorrer dos anos como uma fonte de instrução e inesgotável inspiração para
os estudantes Zen.
1. Procurando o boi
O
boi nunca se extraviou realmente, então por que procurá-lo? Tendo dado as
costas à sua verdadeira natureza, o homem não pode vê-lo. Por causa de sua
corrupção, perdeu de vista o boi. Repentinamente, defronta-se com um
labirinto de caminhos cruzados. A ambição de ganhar terreno e o pavor da
perda surgem como chamas extintas; idéias de certo e errado projetam-se como
adagas.
Desolado através das florestas e aterrorizado nas selvas, ele
procura um boi que não encontra. Acima e abaixo, rios escuros, sem nome
espraiados; Em matas espessas ele percorre muitas trilhas. Cansado até
os ossos, com o coração pesado, continua a buscar algo que não pode
encontrar. Ao entardecer, escuta cigarras gorjeando nas árvores.
2. Encontrando os rastros
Através
dos sutras e dos ensinamentos, ele distingue os rastros do boi. Foi
informado que, assim como vasos de ouro de diferentes feitios são
basicamente do mesmo ouro, também cada e toda coisa é uma manifestação do
si. É, porém, incapaz de distinguir o bem do mal, a verdade da mentira. Não
passou realmente pelo portão, mas tenta ver os rastros do boi.
Viu pegadas sem número Na floresta e à margem das águas. Em
que distâncias vê ele a relva pisada? Mesmo as gargantas mais profundas
das mais altas montanhas Não podem esconder o focinho desse boi que toca
diretamente o céu.
3. Primeiro vislumbre do boi
Se
ele apenas escutar atentamente os sons cotidianos, chegará à compreensão e
no mesmo instante verá a verdadeira fonte. Os seis sentidos não são
diferentes dessa verdadeira fonte. Em qualquer atividade a fonte está
manifestamente presente. É algo análogo ao salto na água ou à liga na tinta.
Quando a visão interior está corretamente focalizada, chega-se à compreensão
de que aquilo que é visto é idêntico à verdadeira fonte.
Um rouxinol gorjeia num ramo, O som brilha nos salgueiros
ondulantes. Ali está o boi, onde poderia esconder-se? Essa esplêndida
cabeça, esses cornos majestosos, Que artista poderia retratá-lo?
4. Agarrando o boi
Hoje
ele encontrou o boi, que tinha estado longamente concorveando nos campos
agressores e realmente o agarrou. Por tanto tempo ele demonstrou nestes
arredores que não era fácil fazê-lo romper com os velhos hábitos. Continua
com os velhos hábitos. Continua a ansiar por pastagens cheirosas, é ainda
obstinado e indomável. Se o homem quiser domá-lo inteiramente, tem de usar
seu chicote.
Ele precisa agarrar o laço com firmeza e não deixá-lo escapar
Porque o boi tem ainda tendências doentias. Ora se precipita para as
montanhas, Ora vagueia numa garganta nevoenta.
5. Domando o boi
Ao
surgir um pensamento, outro e mais outro nasceram. A iluminação traz a
compreensão de que esses pensamentos não sã irreais, já que brotam de nossa
verdadeira natureza. É somente porque a ilusão ainda permanece que eles são
considerados irreais. Esse estado de ilusão não tem origem no mundo
objetivo, mas em nossas próprias mentes.
Ele deve segurar com firmeza o cabresto e não permitir ao boi
vaguear Para que não se extravie por lugares lamacentos. Devidamente
cuidado, torna-se limpo e gentil. Solto, segue de bom grado a seu dono.
6. Montando no boi e trazendo-o de volta à
casa
Cessou
a luta, ganho ou perda não mais o afetam. Ele cantarola melodias rústicas
dos lenhadores e toca os cantos simples das crianças da aldeia. Montando no
boi, contempla serenamente as nuvens no alto. Não volta a cabeça na direção
das tentações. Embora alguém possa tentar perturbá-lo, permanece impassível.
Cavalgando livre como o ar, ele volta animadamente para casa
Através da bruma a tarde, de capa e amplo chapéu de palha. Aonde quer que
vá, produz uma brisa fresca Enquanto uma profunda tranqüilidade domina em
seu coração. Esse boi não precisa nem de uma folha de relva.
7. O boi foi esquecido, ele está só
No
Dharma não há dualidade. O boi é a natureza primária; ele o reconheceu
agora. Uma armadilha não é mas necessária quando se apanhou um coelho, uma
rede torna-se inútil quando se pegou um peixe. Como o ouro separado da
escória, como a lua que atravessa as nuvens, um raio de luz brilha
eternamente.
Somente no boi poderia chegar à casa Mas eis que agora o boi
desapareceu E o homem se senta, sozinho e tranquilo. O rubro sol anda
alto no céu Enquanto ele sonha placidamente. Ao longe, sob o telhado
de palma Jazem seu chicote inútil e seu laço inútil.
8. Esquecido do boi e de si mesmo
Todos
os sentimentos ilusórios pereceram e as idéias de sanidade também se
extinguiram. Ele não permanece no estado de "Eu sou um buddha" e supera
rapidamente o estágio de "Agora me purifiquei do orgulhoso sentimento de que
não sou buddha". Mesmo os mil olhos dos quinhentos buddhas e ancestrais não
podem discernir nele uma qualidade específica. Se centenas de pássaros
fossem agora juncar de flores o seu quarto, ele não poderia envergonhar-se
de si mesmo.
O chicote, o laço, o boi e o homem pertencem igualmente ao vazio.
Tão vasto e infinito é o céu azul Que não pode atingi-lo. Conceito de
nenhuma espécie. Sobre um fogo ardente, um floco de neve não pode
subsistir. Quando a mente atinge esse estado, Chega finalmente a
compreensão Do espírito dos antigos ancestrais.
9. Voltando à fonte
Desde
o puro princípio não houve tanto quanto um grão de poeira para macular a
pureza intrínseca. Ele observa o crescer e o descrever da vida no mundo,
enquanto permanece imparcial num estado de imperturbável serenidade. Esse
crescer e decrescer não é fantasma ou ilusão, porém uma manifestação da
fonte. Por que então há necessidade de lugar por alguma coisa? As águas são
azuis, as montanhas verdes. Só consigo mesmo ele observa a mudança
incessante das coisas.
Ele voltou à origem, retornou à fonte, Mas foi em vão que tomou
suas providências. É com se estivesse agora cego e surdo. Sentado em
sua cabana, não almeja as coisas que estão fora. Os riachos serpenteiam
por si mesmos, As flores vermelhas desabrocham naturalmente vermelhas.
10.
Entrando na praça do mercado com mãos serviçais
O portão de sua casinha está fechado e mesmo os mais sábios não
podem encontrá-lo. Seu panorama mental desapareceu por fim. Segue seu
próprio caminho, não tentando seguir os passos dos antigos sábios.
Carregando uma cabaça, passeia pelo mercado; apoiado em seu bordão, volta
para casa. Ele guia os estalajadeiros e os peixeiros no Caminho do Buddha.
Com o peito descoberto e descalço, ele entra na praça do mercado.
Enlameado e empoeirado, como sorri mostrando os dentes! Sem recorrer a
místicos poderes, faz árvores secas florescerem de repente.
(Shien, Kakuan. As dez figuras do
apascentar do boi com comentário e versos. In: Kapleau, Philip. Os
Três Pilares do Zen. Coleção Corpo e Alma. Belo Horizonte: Editora
Itatiaia, 1978. Pág. 313-323.)
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