Esclarencendo Questões que Causam Interpretações Erradas no Budismo - Desejo, Desapego, Ego, Nirvana e Vacuidade

Entrevista com Dra. Bel Cesar – Terapeuta do Budismo Tibetano

 

Bel Cesar é psicóloga, formada em 1989. Desde então, pratica a psicoterapia sob a perspectiva do Budismo Tibetano e dedica-se ao acompanhamento daqueles que enfrentam a morte e também ao tratamento do estresse pós-traumático com o método de S.E.® - Somatic Experiencing. Organizou a primeira vinda de Lama Gangchen Rinpoche ao Brasil em 1987. Presidiu o Centro de Dharma da Paz por 15 anos. Em parceria com Peter Webb, desenvolve atividades de Ecopsicologia no Sítio Vida de Clara Luz. Possui sete livros publicados pela Editora Gaia. Entre eles, Morrer não se Improvisa, Livro das Emoções e o mais recente, em parceria com Lama Michel Rinpoche O Grande Amor - um objetivo de vida. 

Perguntas feitas por: Ryath

1-Existem desejos e paixões positivas para o Budismo Tibetano? Como ele lida com essas questões?

 

Para responder a essa pergunta, indico a leitura de três livros editados pela Editora Gaia: O Grande Amor, de minha autoria com meu filho Lama Michel Rinpoche, Introdução ao Tantra de Lama Yeshe e Aberto ao Desejo de Mark Epstein.

 

Segundo Lama Michel Rinpoche, em tibetano há duas palavras diferentes para referir-se ao amor: djam-tse e dö-pa, que significam, respectivamente, “eu te amo” e “eu te desejo”. 

 

Neste sentido, "eu te amo" significa “eu quero que você seja feliz” e “eu te desejo” significa “preciso de você para ser feliz”.  

 

Sentimos paixão e desejo porque somos humanos, temos hormônios que produzem essas sensações em nós. Não se trata portanto de negar nossa natureza humana, mas sim de com prender que desejar o outro para nos fazer feliz e desejar que ele seja feliz são duas experiências distintas. Elas até podem ocorrer conjuntamente, mas, em geral, confundimos paixão com amor.

Uma pessoa que cresceu interiormente, isto é, aprendeu a lidar com diversidades e adversidades está mais preparada para viver paixões e gradualmente direciona-las para atitudes amorosas. Ou seja, ela aprendeu a reconhecer seus medos e recursos, assim como ter empatia e compaixão pelos sentimentos alheios.

 

Lama Yeshe ressalta que uma vez vivemos movidos pelo desejo não devemos negar a nossa natureza, mas sim saber transformá-la. Nossos desejos permeiam nosso corpo e nossa mente. Ele escreve: “Os desejos são uma parte tão integral de nossas vidas que a maioria das pessoas consideraria a vida sem eles como a morte em vida.” Porém, além de todos os nossos desejos está a vontade de sermos felizes. Ou seja, não apenas desejamos algo, mas também não queremos sofrer. O problema não está em desejar algo, na ignorância de como desejamos. 

 

No Caminho Gradual para a Iluminação, conhecido por Hinayana, devemos reconhecer que os desejos sensoriais podem ser realizados com uma certa cautela, com autocontrole capaz de não nos perturbar. Já no Mahayana, conhecido como Tantra, a poderosa energia despertada por nossos desejos, torna-se um recurso indispensável para o caminho espiritual. 

 

Lama Yeshe esclarece: "Do mesmo modo que a insatisfação em si nunca pode se tornar satisfação, a tristeza não se transforma naturalmente em felicidade. Segundo o Tantra, não podemos esperar atingir nossa meta de felicidade universal e completa ficando sistematicamente mais tristes. Isso contraria a maneira pela qual as coisas funcionam. Só com o cultivo, hoje, de pequenas experiências de calma e satisfação, é que seremos capazes de atingir nossa meta última de paz e tranqüilidade no futuro. Analogamente, só com o uso habilidoso da energia do desejo e com o hábito regular da experiência daquilo que podemos chamar de prazer autêntico é que poderemos esperar a beatitude e a alegria perenes da iluminação plena.” Lama Yeshe reforça a importância de um exame íntimo de nossas próprias capacidades e experiências, a maneira como lidamos hoje com a energia do desejo. “ Precisamos nos perguntar que quantidade de prazer sensorial conseguimos manejar sem ficarmos loucos. Embora seja fato que a prática do Tantra pode acabar suscitando um estado de consciência sutil e penetrante, o que, por sua própria natureza, é extraordinariamente sublime, isso não significa que seja uma boa idéia seguirmos nossos desejos indiscriminadamente agora, só porque eles também conduzem a um estado sublime. Precisamos ser honestos acerca de nossas limitações atuais e realistas quanto às nossas habilidades atuais caso queiramos que nossa prática do Tantra chegue a algum resultado notável.”

 

Em Aberto ao Desejo, o psicoterapeuta Mark Epstein, une reflexões baseadas no budismo à psicanálise freudiana. Ele ressalta a importância de nos abrirmos ao desejo sem medo, mas com uma forma de amadurecimento pessoal e espiritual.

 

 

2-O que é o desapego no Budismo Tibetano? Ele consiste em algum tipo de frieza, ou ausência de sofrimento quando alguém que amamos morre?

 

O desapego é a capacidade de reconhecermos nossa satisfação de modo coerente com a realidade externa.

 

Quando nos apegamos a algo ou alguém num primeiro  momento, podemos nos sentir seguros. Como uma força extra, um apoio ou mesmo uma simples fonte de prazer. Isto está Ok. O problema surge quando atribuímos a esta situação ou pessoa qualidades ou atributos que eles não são capazes de sustentar. Nós nos agarramos ao objeto de desejo porque projetamos nele uma satisfação que ele não é capaz de nos dar. Não há nada que possa nos satisfazer para sempre.

 

Lama Michel Rinpoche, em nosso livro O grande Amor esclarece: "Se soubermos reconhecer verdadeiramente o que nos dá satisfação, poderemos ter ou não mais coisas sem sofrer com isso. O apego traz um sofrimento enorme porque gera aversão e ódio. Vamos falar de um problema atual: a escassez de água. Quando consigo água, logo penso que é minha. Como sei que há pouca água onde estou, o que faço se uma pessoa se aproxima dizendo que está com sede? Escondo a água. Basta sua intenção de beber a minha água que já sinto uma certa aversão por ela. Da aversão nasce o conflito, que é o oposto do bem-estar. Até então a água era uma fonte de bem-estar, agora gera medo e desconforto. Se alguém quiser de fato a minha água, o conflito pode até acabar numa briga violenta. Quantas vezes o conflito gerado é muito maior que o prazer inicial que tivemos com o nosso objeto de apego!”

Então o ideal é reconhecer o momento em que nos sentimos satisfeitos quando temos prazer!

 

3-O que é o ego? Ele é uma ilusão? Ele tem alguma função positiva? Nós o destruímos quando atingimos o Nirvana?

 

É importante discernir entre um ego funcional, que nos leva a fazer escolhas com discernimento de uma atitude ego centrada. Certa vez ouvi o Dalai Lama dizer que o ego é a bota que desgastamos no espinhoso caminho do crescimento espiritual.Matar o ego é um processo difícil e demorado. Mas é absolutamente benéfico e, por isso, devemos persistir com alegria. Nossa porcentagem de vitória crescerá passo a passo e, um dia, teremos vencido completamente.

 

Lama Gangchen Rinpoche escreveu em seu livro Autocura Tântrica III (Editora Gaia): “As pessoas comuns, em geral, necessitam de muito espaço individual e sempre se sentem desconfortáveis em espaços pequenos e em multidões. O antídoto para essa sensação e para o “ser comum” é familiarizar a mente com o vasto espaço interior do NÃO-EGO, NÃO-EU, NÃO-MEU! Autocura não é desenvolver o ego, mas dissolvê-lo no espaço. Assim, sempre nos sentiremos muito confortáveis e relaxados, mesmo se estivermos rodeados por 30 pessoas gritando todas ao mesmo tempo. Algumas pessoas sentem medo quando entram em contato com esse imenso espaço interior, sentindo que fizeram desaparecer a si mesmas. Mas não há motivo para se preocupar: apenas fizemos desaparecer temporariamente nossa alucinação ou fantasia do ego. A energia do apego ao ego é tão forte nas pessoas comuns que certamente reaparecerá logo. Quando chegar o momento de você entrar em contato com o espaço interior, NÃO SE PREOCUPE, seu corpo e mente e seu eu surgidos interdependentemente ainda estão aqui. Mas agora você pode relaxar!” 

 

4-O que é a felicidade do Nirvana? Como a busca por ela pode beneficiar nossa vida? 

 

Uma felicidade duradoura, com sabedoria.

Lama Michel Rinpoche costuma dizer que felicidade é um estado natural que surge quando pacificamos nossos conflitos internos. Quer dizer, não depende das condições externas, dos meus bens materiais, nem das pessoas que estão à minha volta. O que está à nossa volta é um meio e não a causa original de nossa felicidade. As condições externas podem nos ajudar a realizar a nossa meta de sermos felizes, mas elas, em si mesmas, não podem ser a causa de nossa felicidade. 

 

5-O que é a Vacuidade? 

Vacuidade significa vazio de existência intrínseca ou independente. Ou seja, nada existe por si só, tudo está interligado. Mas, em geral, temos a sensação de que somos independentes e auto-suficientes, e não de que somos manifestações interdependentes. Essa é a base de todos os nossos problemas e sofrimentos.

 

6-Sobre os assuntos que tratamos acima, existe algum ensinamento sobre eles que você gosta?

 

Separei um artigo sobre que escrevi há muito anos sobre Como lidar com o vazio interior.

 

Sonhei que saía para voar à noite quando escutei alguém me dizer: “Siga os peixes”. Apesar do escuro, podia ver na ida as tartarugas nadando e na volta peixes grandes como tubarões. Lembro-me de ter chegado do passeio sentindo grande prazer. Havia sido capaz de explorar o desconhecido como a certeza de ir e voltar em segurança. No entanto, o sonho segue para uma direção oposta, passo a vivenciar uma série de situações em que vou perdendo controle do meu espaço. Recém chegada num novo apartamento, ainda com tudo por arrumar, sou invadida por pessoas querendo ocupar o meu espaço:  uma vizinha que “soube” que eu tinha um piano e queria tocá-lo e várias pessoas de outra cidade que vinham se hospedar. Sem saber como lidar com uma invasão aparentemente inocente do meu espaço, saio e vou para rua. Encontro uma pessoa falando para um público pequeno. Sento-me para ouvi-la. Em seguida, ela me leva para o seu consultório, um lugar difícil de chegar. Tínhamos que passar por caminhos estreitos e descer escadas muito pequenas. Finalmente, deito numa cama e ela começa a me puxar para baixo, massageando minhas pernas. Aceito me entregar até que  sou tomada por um sentimento angustiante de uma solidão aguda. Uma solidão sem eco. Um vazio sem som. Assustada, com uma forte dor no peito, lhe pergunto: “Quanto tempo vai durar?”. Ela não responde. Acordo, com a certeza de que preciso curar de uma vez por todas este vazio: fazendo-me presente para mim mesma.

 

Este sonho representou o raro convite de estar completamente presente em minha solidão. Sem eco, sem sons, sem nomes. Acordada, me questiono se dou conta de senti-la novamente. No entanto, sinto-me inspirada a entrar mais em contato com este vazio interior.

 

Encontro no livro Em busca de uma Psicologia do Despertar do psicoterapeuta budista americano John Welwood uma orientação clara de como estar ativa para aceitar e investigar uma experiência sem uma atitude controladora. Ele esclarece que precisamos seguir certas etapas. 

 

A primeira trata de manter uma atitude de disposição para investigar, para encarar diretamente a experiência e ver em que consiste. A seguir vem o estágio de reconhecer o que está acontecendo internamente. “É isso, me sinto só e isso dói.” No momento em que reconhecemos a experiência dolorida já somos capazes de estar com ela um pouco mais ao invés de negá-la e sair correndo para qualquer outra experiência que nos pareça menos angustiante. Desta forma, vamos ganhando terreno em nossa própria propriedade. 

 

Uma vez que nos permitimos sentir a experiência, somo capazes de estar nela sem julgá-la como certa ou errada. A partir de então, podemos sentir esta experiência sem a urgência de dar um significado ou fazer qualquer coisa. John Welwood ressalta: “O importante aqui não é tanto o que sentimos, mas o ato de nos abrirmos para o sentimento”... “As sensações em si mesmas não conduzem necessariamente à sabedoria, mas o processo de abertura pode conduzir. Quando deixamos de manter distância de uma sensação, ela não conseguiu preservar sua aparente solidez, que só se cristaliza quando a tratamos como um objeto separado de nós.”

 

Reconheço que este é um dia para “colar” de volta em mim mesma. Reflito mais um pouco e encontro outro livro capaz de me inspirar a estar presente nesta solidão interior: Nosso encontro com a vida do monge zen-budista  Thich Nhat Hanh. Ele escreve: “Em alguns dias poderemos nos sentir vazios, exaustos e trises, sem ser aquilo que realmente somos. Nessas dias, mesmo se tentarmos travar contato com os outros, nossos esforços serão em vão. Quanto mais tentarmos, mais falharemos. Quando isso acontece, devemos parar de tentar entrar em contato com o que está fora de nós e voltar a entrar em contato conosco, a ‘estarmos sozinhos’. Devemos fechar a porta para a sociedade, voltar a nós mesmos e praticarmos a respiração consciente, observando profundamente o que está acontecendo dentro de nós e ao nosso redor. Aceitamos todos os fenômenos que observamos, dizemos ‘oi’ para eles, sorrimos para eles. Fazemos bem em executar coisas simples, como meditação andando ou sentada, lavar roupa, limpar o chão, preparar chá e limpar o banheiro em estado consciente. Se fizermos essas coisas, restauraremos a riqueza de nossa vida espiritual” (p. 48).

 

Não podemos parar o mundo, mas podemos parar a nós mesmos. Parar não é perder tempo. Pode parecer paradoxal, mas a finalidade última de parar é gerar forças para seguir em frente. Com mais espaço interno podemos nos mover melhor!

Todos os  nossos textos podem ser reproduzidos.

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