CRIANÇAS NA BALANÇA
Matéria da revista Marie Clair em: https://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,6993,EML542665-1740-1,00.html
Quase todo adulto obeso já foi um bebê fofinho, uma criança gorducha e, provavelmente, um adolescente complexado. Do problema pessoal à questão da saúde pública, a obesidade infantil virou epidemia, exigindo novas atitudes das famílias e dos médicos
Quando era pequena, a apresentadora Leonor Corrêa sempre sofria na véspera de cada aula de educação física. Tudo porque o professor tinha mania de anunciar em voz alta o peso de cada aluno. Esse e outros traumas de infância, resolvidos anos depois com a ajuda de terapia, viraram assunto de um livro de crônicas do cotidiano, dirigido a crianças de 8 a 12 anos. "Na adolescência, eu era a amigona, a mais legal, engraçada e inteligente, só que ninguém queria namorar comigo. Foi bem complicado lidar com isso", diz Leonor, que chegou a pesar 127 quilos durante a gravidez. Aos 40 anos e depois de se submeter à cirurgia de redução do estômago, sua meta é chegar aos 65 quilos em 12 meses. "Vou abandonar a velha rotina de dietas e tentativas que sempre fiz, desde pequena. Mas o melhor é que minha filha Júlia, de 2 anos, vai crescer com uma mãe magra, e que come praticamente a mesma quantidade de comida que ela."
Hoje existem no mundo cerca de 22 milhões de crianças com menos de 5 anos e muitos quilos a mais do que deveriam. Esse número indica que, nas próximas gerações, o planeta pode vir a abrigar mais de 1,5 bilhão de pessoas acima do peso e com todos os problemas que isso acarreta -diabetes, hipertensão, doenças cardíacas e vasculares, determinados tipos de câncer e inúmeros distúrbios psicológicos. O script desse drama de saúde pública não se baseia só na genética; nas últimas décadas, as taxas de obesidade na infância têm crescido em ritmo de epidemia principalmente porque as pessoas se alimentam mal e não se exercitam. O cardápio prático e perigosamente recheado de fast-foods, frituras e refrigerantes tem grande parte da culpa; o restante fica por conta dos hábitos sedentários da vida moderna. Para as crianças, por exemplo, o pega-pega foi substituído pelo videogame e as brincadeiras de roda perderam a vez para a televisão. As conseqüências são claras: um estudo realizado pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), em 2000, revelou que 88% das crianças que assistiam à televisão durante quatro horas diárias eram obesas.
Faz tempo que o problema ultrapassou as fronteiras dos Estados Unidos, onde o número de crianças e adolescentes com excesso de peso triplicou nos últimos 20 anos. Agora é comum encontrar pelo menos uma ou duas crianças gordas por sala de aula nas escolas da Europa, Austrália, América Latina e Ásia. "No Brasil, 10% dos menores de 10 anos têm sobrepeso e obesidade, usando como parâmetro os gráficos que relacionam peso e altura com as etapas do crescimento da criança", explica Fábio Ancona Lopez, presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo.
A tabela é diferente para meninos e meninas e também varia de acordo com a idade, mas, nela, o problema se desenha com nitidez. Assim, um menino de 8 anos que mede 1,30 m e pesa pouco mais ou pouco menos que 28 quilos é considerado normal; há sobrepeso se a balança marcar de 33 a 35 quilos; mas, se o seu peso atingir 40 quilos, o diagnóstico é obesidade. "Sempre que o peso ultrapassa a curva da estatura é preciso prestar atenção e mexer na alimentação para tentar segurar essa tendência", explica Ancona Lopez, que também é professor da Unifesp.
"No primeiro ano de vida, é normal que um bebê tenha dobrinhas, mas na idade pré-escolar a dobrinha significa que ele é gordo. Uma criança de 6 anos tem de ter costela aparecendo e pernas finas. Essa é a proporção corporal dessa fase. As antigas dobrinhas, que eram depósito de gordura, devem ser transformadas em ossos e tecido muscular", afirma ele.
SEM AÇÚCAR E COM AFETO
Até pouco tempo atrás, criança gordinha era padrão de saúde. Além disso, muita gente achava que o melhor era deixar para emagrecer mais tarde, na adolescência ou já adulto. Hoje, essas crenças estão na contramão de tudo o que se sabe. Já está provado que quanto mais tempo a criança permanecer com sobrepeso maiores serão as chances de ela se tornar um adulto obeso. "Quem chega com excesso de peso à adolescência continua assim pela vida afora em 80% dos casos", explica a endocrinologista Zuleika Halpern, de São Paulo.
Ser gordo tem a ver com a hereditariedade e com o ambiente. As pessoas que nascem com forte tendência à obesidade são, em geral, mais cheinhas e vão lutar contra a balança a vida inteira, mesmo que mantenham um estilo de vida exemplar, façam esportes e controlem a alimentação. Outras, que têm uma carga genética menos determinante e hábitos razoavelmente saudáveis, conseguem se manter na linha sem tanto sacrifício. Mas é preciso lembrar que existem também as pessoas que não carregam o problema nos genes mas são gordas porque se alimentam de forma desastrosa, são sedentárias e desregradas. "Quando pai e mãe são gordos, o filho tem 80% de chances de se tornar um adulto igualmente gordo. Se a obesidade é um problema só do pai ou só da mãe, esse risco dimimui para 50%. E, se nenhum dos genitores tem o problema, a criança pode vir a ser obesa em 10% das vezes", diz Zuleika.
Por outro lado, a família, especialmente a mãe, tem um outro tipo de participação, também decisiva, na obesidade das suas crianças. Paulo Cavalcante Muzy, acadêmico de medicina da Unifesp, em São Paulo, comandou um trabalho inédito de 2001 a 2002, acompanhando o tratamento de 46 crianças e adolescentes obesos e suas mães, no Ambulatório de Obesidade do departamento de pediatria da Unifesp.
O NOVO SABOR DO RECREIO
Por aqui, salgadinhos, chocolates e outras tentações continuam à venda, mas já não fazem tanto sucesso no recreio de todas as escolas. Nos últimos anos, a reeducação alimentar virou tema de projetos e entrou na lição de casa de muitas escolas da rede pública e também da particular. Pioneiro no assunto, o Colégio Dante Alighieri, de São Paulo, desenvolveu um trabalho exemplar, que vem sendo comandado pela nutricionista Martha Fonseca Paschoa desde 1999. "Na minha primeira semana, tirei a coxinha da lanchonete e tive de enfrentar uma fila de alunos de todas as idades reclamando na porta da minha sala", conta Martha. Mesmo assim, a coxinha não voltou e todas as frituras foram sendo gradativamente substituídas por salgados assados e que pesam 50 g menos que os convencionais. No lugar das máquinas de refrigerante vieram as refresqueiras; e nas gôndolas, antes ocupadas por batatinhas e amendoins, entraram iogurtes, frutas e sanduíches naturais. "Hoje, os refrigerantes estão na geladeira, a criança pode pedir, mas não vê logo que chega à cantina", explica a nutricionista. Entre outras inovações, a equipe de nutricionistas da escola criou o Kit-Sabor, um lanche diário e balanceado, que a mãe encomenda (por mês, semana ou dia, como desejar) e a criança recebe na hora do recreio. Dentro do saquinho identificado pelo nome e série do aluno, cerca de 500 calorias ricas em carboidrato e proteínas, e pobres em colesterol, sódio e gorduras saturadas.
Lá, comida virou assunto importante. Os pequeninos do maternal ouvem a professora contar histórias sobre o café da manhã; as crianças de 1ª e 2ª séries visitam a cozinha e degustam frutas e saladas, e os pais são convidados a assistir às palestras sobre alimentação, que a escola promove de tempos em tempos. São 5 mil alunos aprendendo diariamente a comer morangos, melão ou cenourinhas, tudo especialmente embalado, para despertar o paladar e uma nova consciência.
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