Os Tantras Budistas - as Escrituras do Vajrayana

Tantra, continuum, é o nome dado às escrituras esotéricas do Budismo Vajrayana e do Hinduísmo. Em ambos os casos, essas escrituras são marcadas por um grande simbolismo, tornando-se essencial que seus ensinamentos sejam transmitidos e estudados apenas com a ajuda de um professor qualificado.

Os eruditos tibetanos costumam atribuir os tantras ao próprio Buda Shakyamuni. Alguns afirmam que eles foram transmitidos em um dia de lua cheia, um ano após o despertar de Shakyamuni. Outros autores afirmam que os tantras foram transmitidos um mês antes de o Buda manifestar o parinirvana (isto é, de falecer e alcançar a liberação final).

Segundo os tantras budistas, é possível atingir a iluminação em um período de tempo relativamente curto através da transformação das emoções negativas (apego, ódio, ignorância, etc.), ou mais precisamente, revelando a sua verdadeira natureza. Os tantras de Guhyasamaja e Heruka Chakrasamvara, por exemplo, trabalham com a transmutação do desejo, enquanto o tantra de Yamantaka trabalha com a transmutação do ódio.

O tantra propõe incorporar todas as ações, todos os pensamentos, todas as emoções, no caminho. Nada em si é puro ou impuro, bom ou ruim, mundano ou transcendente; as coisas só aparecem para nós destes modos por causa das idéias pré-concebidas. No sistema do tantra, qualquer ação até mesmo andar, comer, defecar ou dormir pode ser incorporada ao caminho espiritual.

(John Powers, Introduction to Tibetan Buddhism)

De acordo com a tradição, os tantras foram abertos pela primeira vez para o rei Indrabodhi [de Uddiyana]. Um dia, o rei estava na sacada de seu palácio quando avistou o Buddha voando com o seu séqüito de arhats. O rei Indrabodhi perguntou a seu ministro quem eram esses extraordinários seres e se aceitariam um convite para almoçar em seu palácio. O rei então ofereceu uma bela refeição ao Buda, que por sua vez lhe deu um ensinamento sobre a renúncia aos apegos mundanos. O rei ouviu com atenção, mas ao final perguntou se o Buda poderia oferecer um ensinamento que não requeresse a renúncia aos seus deveres de soberano, seus prazeres ou sua riqueza. "Sou um rei", disse ele, "e centenas de milhares de súditos dependem de mim. Não posso abandonar minhas responsabilidades." O Buddha, em sua onisciência, reconheceu que o rei Indrabodhi tinha karma para praticar o Budismo Esotérico e, algum tempo mais tarde, abriu a mandala de Guhyasamaja para ele, aparecendo no céu como a deidade e séqüito e concedendo iniciação e ensinamentos. O rei praticou tão bem que tanto ele quanto seus súditos atingiram a iluminação.

(Chagdud Khadro, Práticas Preliminares do Budismo Vajrayana)

[O] verdadeiro significado da palavra [tantra] é "continuidade", no sentido de que apesar de todos os fenômenos serem vazios, ainda assim eles continuam a se manifestar. Todos os métodos tântricos trabalham com esta continuação, tomando a vacuidade de todos os fenômenos — com a qual os sutra trabalham — como sua premissa básica.

(Chögyal Namkhai Norbu, The Crystal and the Way of Light)

Os tantras são baseados no conhecimento e aplicação da energia. Sua origem não é encontrada nos ensinamentos orais de um mestre, como é o caso dos sutras ensinados por Shakyamuni, mas sim da manifestação na visão pura de um ser realizado. Um manifestação pura surge através da energia dos ensinamentos em seu aspecto sutil e luminoso, enquanto nossa visão kármica é baseada em seu aspecto grosseiro ou material. Portanto, para receber este tipo de transmissão, é necessário ter a capacidade de perceber a dimensão sutil da luz. [...]

Para explicar as origens dos Tantras, podemos tomar como exemplo o mais conhecido, o Kalachakra, o qual se considera ter sido transmitido pelo próprio Buda Shakyamuni. É claro, porém, que esse tantra não poderia ter sido transmitido pelo Buda em seu aspecto físico, pois a divindade Kalachakra é representada em união com sua consorte, um forma conhecido como pai-mãe (tib. yab-yum), enquanto o próprio Buda era um monge. Isto mostra como a transmissão de um tantra não vem pelo contato de uma natureza comum, mas sim através da dimensão pura da transformação, que é perceptível apenas por aqueles indivíduos que possuem capacidade suficiente. Mandala de Kalachakra

(Chögyal Namkhai Norbu, Dzogchen)

Enquanto o ensinamento básico do budismo Mahayana refere-se ao desenvolvimento da sabedoria, o conhecimento transcendente, os ensinamentos básicos do tantra estão ligados ao trabalho com a energia. A energia é descrita no Vajramala Kriyayoga Tantra como "aquilo que habita no coração de todos os seres, a simplicidade que existe por si mesma, o que mantém a sabedoria. Essa essência indestrutível é a energia da grande alegria e permeia tudo, como o espaço. Este é o corpo dhármico da não-fixação". De acordo com esse tantra, "Esta energia é o sustentáculo da inteligência primordial que percebe o mundo dos fenômenos; é a energia que impulsiona tanto os estados iluminados quanto os estados confusos da mente. É indestrutível, no sentido de estar constantemente em marcha. É a força motriz da emoção e do pensamento no estado confuso, e da compaixão e da sabedoria no estado iluminado". [...]

A sabedoria tântrica traz o nirvana ao samsara. Isso pode parecer um pouco chocante. antes de alcançar o nível do tantra, tentamos abandonar o samsara e nos esforçamos par alcançar o nirvana. mas, no fim, temos de compreender a inutilidade de nos esforçarmos e então, nos tornamos completamente unos com o nirvana. Para captar realmente a energia do nirvana e nos tornarmos unos com ele, precisamos de uma parceria com o mundo ordinário. Por isso, a expressão "sabedoria ordinária" é muito usada na tradição tântrica.

(Chögyam Trungpa, Cutting Through Spiritual Materialism)

Os métodos tântricos permitem lidar diretamente com as delusões e emoções conflitantes. De fato, as delusões que devem ser abandonadas e os diversos tipos de qualidades espirituais que precisam ser cultivadas são vistas como os dois lados da mesma moeda, ao invés de serem dois tipos de experiência completamente opostos. Por isso, o sistema tântrico também pe chamado "tradição esotérica" — não por conter alguma coisa que precise ser mantido em segredo, mas sim porque a prática do tantrismo requer que o praticante tenha certos atributos. Em um certo sentido, é preciso ter alguma habilidade para praticar o tantra, senão sua prática não trará nenhum benefício. Os ensinamentos tântricos são mantidos em segredo até certo ponto — não porque o seu conteúdo não deva ser revelado, mas sim porque muitas pessoas são incapazes de compreendê-los. [...] O objetivo da prática tântrica é atravessar o abismo entre o consciente e o inconsciente, o sagrado e o profano, e todas as outras dualidades.

(Traleg Kyabgon Rinpoche, The Essence of Buddhism)

O tantra é um caminho de transformação da não-iluminação [ignorância] e das emoções como a essência búddhica e as virtudes búddhicas. Mas isto não é uma transformação de algo em outra coisa, de ferro em ouro, como alguns eruditos recentemente entenderam; é transformar, purificar ou aperfeiçoar algo que está maculado para o seu próprio estado verdadeiro. [...] [O]s sutras e tantras não diferem quanto à visão da vacuidade, a verdade absoluta, mas suas diferenças estão na visão das aparências, a verdade relativa.

(Tulku Thondup, The Practice of Dzogchen)

Apesar de o resultado último ser o mesmo, isto é, a iluminação, a diferença entre o Sutra e o Tantra está nos métodos de prática. O Vajrayana tem mais métodos de prática, centenas e milhares de diferentes divindades para subjugar incontáveis máculas através de meditações, recitação de mantra e visualizações. A visualização é para purificar o corpo. A recitação de mantra é para purificar a fala. A meditação sobre a essência última da divindade é para purificar a mente. Dentro de uma sessão de prática, você envolve toda parte do seu corpo e isto é um método muito profundo. Se você oferecer um pedaço de fruta com sinceridade, você pode acumular muitos méritos. Através da visualização, pode-se criar oferendas infinitas, isto é, mandalas e incontáveis universos aos infinitos buddhas. A quantidade de méritos que se pode acumular é vasta e incontável. [...]

Muitas pessoas têm dúvidas sobre se o Vajrayana é buddhismo ou hinduísmo. Parece racional pensar que o budismo esotérico foi influenciado pelo hinduísmo porque, quando comparados, eles se parecem. Antes do budismo, já existia o hinduísmo na Índia. [...] A aparência do Vajrayana é similar à do hinduísmo, mas cada aspecto tem um significado simbólico. [...]

Por exemplo, o puja [cerimônia] do fogo realmente era um ritual hindu. De fato, todas as práticas rituais foram adaptadas de rituais hindus, exceto a filosofia e a meditação. Estes rituais foram adaptados para o ambiente e para as pessoas. Os hindus realizam o puja do fogo para agradar os deuses e até mesmo sacrificar animais no fogo. [...] [No buddhismo isto nunca é feito, pois o Vajrayana] converteu cada substância como um símbolo de nossos próprias máculas, tais como o ódio. O fogo simboliza a sabedoria, que queima e supera as máculas, para que possamos compreender a natureza da mente.

(Shangpa Rinpoche, Introduction to Vajrayana)

[Resumidamente, os tantras budistas diferem dos tantras hindus] tanto na ação quanto na filosofia. Em termos de ação, o tantra budista é baseado na motivação de bodhichitta [a mente altruísta que visa alcançar a iluminação para beneficiar a todos os seres], enquanto o tantra hindu não [tem esta motivação]. Em termos de filosofia, o tantra budista é baseado na teoria do anatman, ou não-eu, enquanto o tantra hindu é baseado na teoria de um eu verdadeiramente existente [atman]. Outras yogas, como exercícios de respiração e práticas com chakras [centros de energia do corpo] e nadis [canais de energia do corpo] têm muitas similaridades e diferenças sutis.

(Dalai Lama, When the Iron Bird Flies)

Sem bodhichitta, os ensinamentos sobre a visão e a meditação, por mais profundos que possam parecer, não serão de qualquer utilidade para atingir o estado búddhico perfeito. As práticas tântricas como o estágio de geração, o estágio de perfeição e assim por diante, quando praticadas dentro do contexto da bodhichitta, conduzem ao estágio búdico completo em uma única vida. Mas sem bodhichitta eles não são diferentes dos métodos dos hereges. Os hereges também têm muitas práticas que envolvem meditação sobre divindades, recitar mantras e trabalhar com canais e energias; eles também se comportam de acordo com o princípio da causa e efeito. Mas é unicamente por não tomarem refúgio ou não fazerem surgir a bodhichitta que eles são incapazes de atingir a liberação dos reinos do samsara.

É por isto que o Geshe Kharak Gomchung disse, "De nada adianta tomar todos os votos, desde os de refúgio até os samayas tântricos, a menos que a sua mente tenha renunciado às coisas deste mundo. De nada adianta ensinar constantemente o Dharma aos outros, a menos que você possa pacificar o seu próprio orgulho. De nada adianta fazer progresso se você relega os preceitos do refúgio ao último lugar. De nada adianta praticar dia e noite a menos que você combine isto com a bodhichitta."

(Patrul Rinpoche, The Words of My Perfect Teacher)

As aparências exteriores dos tantras buddhistas parecem-se em um grau muito acentuado com as dos tantras hindus, mas na realidade há uma semelhança muito pequena entre eles, tanto na maneira subjetiva ou nas doutrinas filosóficas inculcadas neles ou nos princípios religiosa. Isto não é para ser admirado, já que os objetivos e objeções dos buddhistas são grandemente diferentes daqueles dos hindus. [...] O desenvolvimento no tantra feito pelos budistas e a extraordinária arte plástica desenvolvida por eles não deixou de criar também uma impressão na mente dos hindus, que prontamente incorporaram muitas idéias, doutrinas, práticas e deuses originalmente concebidos pelos buddhistas para a sua religião. A literatura, que segue pelo nome de tantras hindus, surgiu quase imediatamente depois que as idéias budistas tinham se estabelecido. [...] O tantra buddhista influenciou grandemente a literatura tântrica hindu, e por isto é incorreto dizer que o budismo era uma conseqüência do shivaísmo. Isto é sustentar, de outro modo, que os tantras hindus eram uma conseqüência do Vajrayana.

(Benoytosh Bhattacharyya, Introduction to Buddhist Esoterism)

A influência do budismo tântrico sobre o hinduísmo foi tão profunda que até presentemente a maioria dos eruditos ocidentais trabalham sob a impressão de que o tantrismo é uma criação hindu que foi retomada pelas escolas budistas posteriores, mais ou menos decantes. Contra este ponto de vista falam a grande antigüidade e o desenvolvimento consistente das tendências tântricas no budismo. Já anteriormente, os antigos mahasanghikas tinham uma coleção especial de fórmulas mântricas no seu Dharani Pitaka, e o Manjushri-mula-kalpa, que de acordo com algumas autoridades remonta ao século I, contem não apenas mantras e dharanis, mas também várias mandalas e mudras. Mesmo que a data do Manjushri-mula-kalpa seja incerta, parece provável que o sistema do budismo tântrico estava cristalizado numa forma definitiva no fim século III, como podemos ver no bem conhecido Guhyasamaja Tantra.

Declarar o buhismo tântrico como um lançamento do shivaísmo só é possível para os que não têm conhecimento em primeira mão da literatura tântrica. Uma comparação dos tantras hindus como os do budismo (que estão preservados principalmente em tibetano e que por isto ficaram desconhecidos pelo indologistas) mostra não somente uma assombrosa divergência de métodos e objetivos, apesar das suas semelhanças externas, mas também provam a prioridade histórica e espiritual e a originalidade dos tantras budistas.

Shankara Acharya, o grande filósofo hindu do século IX, cujos trabalhos formam o fundamento de toda a filosofia [monista ou Advaita Vedanta] do shivaísmo, adotou as idéias de Nagarjuna e de seus seguidores em tão grande extensão que os hindus ortodoxos suspeitaram que ele era um devoto secreto do budismo. De modo similar, os tantras hindus também assumiram o encargo dos métodos e princípios do budismo tântrico e os adaptaram aos seus próprios objetivos (assim como os budistas tinham adaptado os antigos princípios e técnicas do yoga aos seus próprios sistemas de meditação). Este ponto de vista não é somente sustentado pela tradição tibetana e confirmado pelo estudo da sua literatura, mas também foi verificado pelos eruditos indianos depois de uma investigação critica dos textos mais antigos do budismo tântrico em sânscrito e do seu relacionamento histórico e ideológico com os tantras hindus. [...]

A principal diferença é que o budismo tântrico não é shaktismo. O conceito hindu de Shakti, do poder divino, do aspecto criativo feminino do deus supremo (Shiva) ou de suas emanações não desempenham nenhum papel no budismo. Enquanto nos tantras hindus o conceito de poder (sânsc. shakti) forma o foco de interesse, a idéia central do budismo tântrico é prajna, conhecimento, sabedoria. Para o budista, shakti é maya, a própria força que cria ilusões da qual somente a sabedoria prajna pode nos libertar. Por isto, o objetivo do budista não é adquirir forças, ou se unir às forças do universo, nem se tornar seu instrumento ou tornar-se seu senhor, mas pelo contrário, ele tenta se libertar dessas forças que, desde a eternidade, o mantêm prisioneiro do samsara.

(Lama Anagarika Govinda, Foundations of Tibetan Mysticism)

Outro tipo de escritura tântrica, utilizado particularmente pela escola tibetana Nyingma, é chamado de tesouro (tib. terma / gter ma) — manuscritos, relíquias, objetos, elementos naturais ou lembranças, guardados em locais secretos ou na mente dos reveladores de tesouros (tib. tertön/ gter ston).

[Os termas] são escrituras que foram deliberadamente escondidas e descobertas em sucessivos momentos apropriados por mestres realizados, através do seu poder iluminado. Os termas são ensinamentos que representam uma profunda, autêntica e poderosa forma tântrica do treinamento buddhista. Centenas de tertöns, os descobridores dos tesouros de Dharma, encontraram milhares de volumes de escrituras e objetos sagrados, escondidos na terra, na água, no céu, nas montanhas, nas rochas e na mente. Praticando estes ensinamentos, muitos de seus seguidores alcançaram o estado de iluminação completa, o estado búdico. Várias escolas do budismo no Tibet têm termas, mas a escola Nyingma tem a tradição mais rica.

(Tulku Thondup Rinpoche, Hidden Teachings of Tibet)

Os ensinamentos tântricos geralmente apresentam a mente em vários níveis. O nível mais grosseiro da mente estaria relacionado às faculdades dos sentidos e às emoções. O nível sutil estaria relacionado aos ventos (sânsc. prana) de energia do corpo. Já o nível mais sutil estaria relacionado à mente inata fundamental de clara luz. Este nível extremamente sutil seria a verdadeira natureza da mente, união indissociável de vacuidade e lucidez.

[Os tantras] descrevem as várias categorias da mente ou consciência, das mais grosseiras às mais sutis. Os estados sutis da mente são mais poderosos e efetivos quando aplicados na prática espiritual. O nível mais grosseiro da consciência percebe as coisas pelos olhos, ouvidos, nariz, língua e corpo. [...] A não ser em estados extraordinários de meditação, a consciência mais sutil ou profunda manifesta-se quando estamos morrendo. Os níveis mais sutis de consciência também aparecem de maneira resumida quando começamos a dormir, terminamos um sonho, espirramos, bocejamos e durante o orgasmo.

(Dalai Lama, Como Praticar)

A fim de reconhecer estes níveis mais sutis da mente, os tantras apresentam quatro níveis ou modos de entendimento. O primeiro deles é o sentido literal das palavras. O segundo é o sentido geral quanto aos procedimentos práticos e yogas meditativas. O terceiro é o sentido secreto ou oculto, que lida com os ensinamentos esotéricos. O quarto é o sentido absoluto ou último, que se refere à mente fundamental inata de clara luz, à união das verdades relativa e absoluta, e à da união da sabedoria da vacuidade com o grande êxtase.

Os métodos tântricos procuram extrair dos três venenos da mente desejo (apego), ódio (raiva, aversão) e ignorância (desconhecimento) os seus respectivos antídotos os meios hábeis, a compaixão e a sabedoria. Por exemplo, uma mente tomada pelo veneno do desejo faz uma grande concentração sobre o seu objeto de anseio, e essa própria concentração será utilizada como o antídoto para o desejo. De maneira semelhante, o veneno da raiva carrega uma grande energia, e essa poderosa energia será utilizada como antídoto para a raiva. Finalmente, o reconhecimento da natureza vazia do veneno da ignorância origina o seu antídoto, a sabedoria.

O cultivo desses antídotos é um pré-requisito para se começar a prática Vajrayana: a qualidade do método ou meios hábeis (sânsc. upaya) para se renunciar aos apegos do samsara; a qualidade da compaixão (sânsc. karuna) para se gerar a mente da iluminação (sânsc. bodhichitta), que visa trazer benefícios a todos os seres sencientes; e a qualidade da sabedoria (sânsc. prajna), que compreende perfeitamente a vacuidade (sânsc. shunyata), a verdadeira natureza dos fenômenos. A compreensão dos ensinamentos dos sutras é indispensável para compreender os ensinamentos dos tantras.

Muitos de nós desejamos praticar o caminho tântrico com a esperança sincera de atingir a iluminação completa o quanto antes possível. Para nos tornarmos completamente iluminados através da prática do tantra, entretanto, há algumas preliminares essenciais que precisamos praticar primeiro. Para ser verdadeiramente qualificado para praticar o tantra, precisamos cultivar os três caminhos — renúncia, bodhichitta (a mente altruísta da iluminação) e a sabedoria que realiza a vacuidade.

(Da introdução de Geshe Tsultrim Gyeltsen em Illuminating the Path to Enlightenment)

Sem o livre espírito de renúncia, [o praticante] ficará muito constringido para ser capaz de manter as disciplinas tântricas, por causa do desejo sensual e dos impulsos biológicos excessivos. Este pré-requisito de renúncia é particularmente importante nos tantras superiores, que são expressados com imagens sexuais. [...] [A segunda qualidade,] a grande compaixão da bodhichitta, é necessária para transformar a prática em uma causa de onisciência. Novamente, como muitas imagens das yogas dos tantras superiores são violentas, um praticante não saturado com grande compaixão pode ter facilmente uma idéia errônea. A terceira qualidade, um compressão correta da doutrina da vacuidade, é fundamental para a prática tântrica. Cada prática é começada, estruturada e terminada com uma meditação sobre a vacuidade. [...] Apesar de se dizer que o Vajrayana é um caminho rápido quando praticado corretamente sobre um base espiritual adequada, ele é perigoso para os espiritualmente imaturos. Este tipo de perigo é um dos motivos pelos quais o Vajrayana deve ser praticado sob a supervisão de um mestre vajra adequado.

(Dalai Lama, The Path to Enlightenment)

A importância de meditar sobre a vacuidade é universal entre as escolas do buddhismo tibetano. Na escola Nyingma, a prática do Dzogchen (particularmente as práticas de Trekchö e Tögal) incluem um processo preliminar que é descrito como encontrar a origem, a permanência e a dissolução da natureza da mente. A meditação sobre a vacuidade acontece no contexto desta busca. De modo similar, os ensinamentos Kagyü sobre o Mahamudra falam sobre a "unidirecionalidade", "transcendência de elaborações conceituais", "sabor único" e "além da meditação". Neste contexto, unidirecionalidade refere-se ao cultiva da permanência calma [sânsc. shamatha], onde a primeira parte do cultivo da transcendência de elaborações conceituais é realmente a meditação sobre a vacuidade. O ensinamento Sakya sobre o seltong sungjug refere-se à não-dualidade e à união da profundidade e claridade — profundidade refere-se aos ensinamentos sobre a vacuidade, claridade refere-se à natureza da mente. Na Gelug, precisamos cultivar a sabedoria da vacuidade em conjunção com a experiência de êxtase no contexto da prática de cultivo da sabedoria que é a união indivisível de êxtase e vacuidade. Em todas as quatro escolas, a vacuidade que é ensinada é aquela que Nagarjuna apresentou em sues Fundamentos do Caminho do Meio. A apresentação da vacuidade de Nagarjuna é comum tanto ao Paramitayana quando ao Vajrayana. No Vajrayana, entretanto, uma prática única coloca ênfase específica sobre o cultivo da experiência subjetiva da sabedoria da vacuidade; a vacuidade que é o objeto é comum tanto ao sutra quanto ao tantra.

(Dalai Lama, Illuminating the Path to Enlightenment)

A moralidade da liberação individual [sânsc. pratimoksha] é praticada principalmente ao se evitarem ações físicas e verbais que prejudiquem os outros. Esta prática é chamada de "individual" porque fornece um meio para que as pessoas possam se mover para além da rotina repetitiva de nascimento, envelhecimento, doença e morte, que os buddhistas chamam de existência cíclica ou samsara. A moralidade da consideração pelos outros [sânsc. bodhichitta] — chamada moralidade dos bodhisattvas (seres essencialmente preocupados em ajudar os outros) — é praticada principalmente ao não deixar a mente cair no egocentrismo. Para os praticantes da moralidade do bodhisattva, o ponto essencial é evitar a auto-indulgência, mas também evitar as ações nocivas do corpo e da fala. A moralidade do tantra [sânsc. samaya] está centrada em técnicas específicas do corpo e da mente para ajudar os outros. Ela fornece um meio para evitar e, assim, transcender nossa percepção limitada de nossos corpos e mentes, de modo que possamos nos perceber irradiando sabedoria e compaixão.

(Dalai Lama, Como Praticar)

Nos tantras buddhistas, existe a identificação do universo com a dimensão pura da mandala; todos os pensamentos são atividades da mente iluminada; todos os sons são mantras; todos os gestos são mudras; todos os seres são budas. Por causa dos tantras, o Vajrayana também é conhecido como Veículo do Tantra (sânsc. Tantrayana), em contraste com o Hinayana e o Mahayana, que formam o Veículo do Sutra (sânsc. Sutrayana). O Hinayana, o Mahayana e o Vajrayana são vistos como caminhos sucessivos até a iluminação.

Protegermo-nos dos hábitos prejudiciais através da remoção de suas causas é a abordagem do Hinayana ou veículo individual. Transformar as aflições — as tendências negativas ou auto-referentes — em atitudes positivas e altruístas baseadas no amor e na compaixão é, em sua maioria, a abordagem Mahayana ou veículo universal. Simplesmente reconhecer a natureza das aflições e através dela nos liberarmos delas, transmutando-as assim que surgem, é primariamente o método Vajrayana ou veículo adamantino.

A abordagem hinayana envolve manter disciplina perfeita e cessar o comportamento de um modo que causa mal a si mesmo e aos outros. Isto protege o praticante de obstáculos e distrações e permite a meditação unidirecionada. A abordagem Mahayana envolve praticar a compaixão para todos os seres assim como meditar sobre a vacuidade profunda. Estes dois são feitos simultaneamente. Sobre a base do estado altruísta da mente, ou bodhichitta, praticamos as seis perfeições — generosidade, ética, paciência, perseverança entusiástica, meditação e sabedoria. A abordagem do Budismo Esotérico é um modo de transmutação que purifica todas as atividades — emoções, ilusões impuras — e nos permite rapidamente alcançar a iluminação com as meditações dos estágios de geração e completude.

(Kalu Rinpoche, Luminous Mind)

[Segundo o Budismo Esotérico,] no primeiro giro da roda [do Dharma], em Varanasi, ele [o Buddha] ensinou as Quatro Verdades Nobres comuns tanto ao Hinayana quanto ao Mahayana. No segundo, em Rajagriha, ou Pico do Abutre, ele expôs os ensinamentos Mahayana sobre a verdade absoluta — a verdade vazia de características e além de todas as categorias conceituais. Estes ensinamentos estão contidos no Prajnaparamita Sutra em Cem Mil Linhas. O terceiro giro da roda, [realizado] em vários tempos e lugares diferentes, foi devotado aos ensinamentos últimos do Vajrayana, ou veículo adamantino.

(Do comentário de Dilgo Khyentse Rinpoche em The Heart Treasure of the Enlightened Ones)

O caminho da moderação [Hinayana] é praticado externamente;

O espírito de bodhisattva [Mahayana] é praticado internamente;

Os métodos esotéricos do mantra [Vajrayana] são praticados secretamente.

(Lama Je Tsongkhapa)

No tantra, as três jóias (sânsc. triratna) do refúgio externo — Buda, Dharma e Sangha — são reinterpretados como as "três raízes" do refúgio interno — o Lama, o Yidam e a Dakini. O mestre (sânsc. guru, tib. bla ma) ou Lama, representado o Buda, é o detentor da linhagem e das bênçãos, que confere as iniciações, as transmissões orais e os ensinamentos. O professor principal de um praticante do Budismo Esotérico é chamado mestre raiz (sânsc. mula-guru, tib. rtsa ba'i bla ma / tsawe lama).

Dakini A divindade escolhida (sânsc. ishta-devata, tib. yi dam) ou Yidam, o arquétipo meditacional com o qual se mantém um compromisso (sânsc. samaya, tib. damtsig / dam tshig), é a corporificação das sabedorias búdicas que representam a experiência direta do Dharma nos estágios da sadhana.

Finalmente, a Dakini (tib. khandroma / mkha' 'gro ma), um ser feminino de aspecto irado, representa a companhia da Sangha, a manifestação da mente iluminada que ajuda a atingir as quatro atividades iluminadas (pacífica, incrementadora, magnetizadora e irada). Às vezes elas são associadas também aos protetores do Dharma (sânsc. dharmapala, tib. chökyong / chos skyong).

Os três corpos (dharmakaya, sambhogakaya e nirmanakaya) são considerados os objetos do refúgio secreto.

A palavra "refúgio" denota um lugar de segurança ou proteção. Em essência, o voto de refúgio implica assumir o compromisso de nos direcionarmos sempre de modo a não causarmos mal aos outros. Não é que, ao tomarmos refúgio, o Buda ou algum outro ser iluminado estenda uma varinha mágica e, de repente, somos transportados para além da dor e da insatisfação. Antes, nós asseguramos nossa própria proteção ao lidarmos com a raiz do sofrimento, que reside em nossos próprios pensamentos e ações nocivos. Se o reduzirmos através do uso disciplinado do corpo, fala e mente, evitamos suas conseqüências kármicas negativas e, assim, eliminamos as causas do sofrimento. [...]

Nós tomamos refúgio nas Três Jóias o Buda, o Dharma e a Sangha. O Buda é semelhante a alguém que andou por uma certa estrada e, pelo fato de ter alcançado o destino final, conhece o percurso e é capaz de nos mostrar o caminho. A estrada em si é o Dharma. E aqueles com quem viajamos, aqueles que nos oferecem apoio e em quem confiamos, formam a Sangha. Ao tomar refúgio, seguimos os passos daqueles que nos precedem no caminho da iluminação. [...]

[No Budismo Esotérico, a palavra refúgio] possui três aspectos. Até agora discorremos sobre o seu significado externo. Ela também traz significados interno e secreto [...]. Na tradição Vajrayana, as fontes internas de refúgio são as Três Raízes o lama, o yidam e a dakini. Diz-se delas que são a fonte das bênçãos, da realização espiritual e da atividade iluminada, respectivamente.

O lama ou mestre espiritual é a raiz das bênçãos, no sentido de que ele transmite o conhecimento, os métodos e a sabedoria que nos capacitam a alcançar a liberação. O yidam ou divindade meditativa escolhida é a raiz da realização, no sentido de que, por meio de nossa prática somos capazes de compreender a natureza da mente. Através do métodos da divindade meditativa, somos capazes de compreender e consumar a dakini, o princípio feminino da sabedoria que propicia a atividade iluminada.

O objeto secreto de refúgio nada mais é do que a verdadeira natureza da mente, a essência de todo ser, a natureza búdica em sua perfeição. Essa natureza possui duas facetas: a primeira, dharmakaya, a natureza absoluta da mente que está além dos conceitos ordinários, pode ser comparada ao sol; a segunda, rupakaya ou corpo da forma, pode ser comparada à irradiação brilhante do sol, que ocorre naturalmente e sem esforço. Essa irradiação, que se manifesta para benefício dos outros, possui dois aspectos: o sambhogakaya a manifestação de forma pura, perceptível aos grandes praticantes , e a manifestação nirmanakaya, que aparece para benefício daqueles que são incapazes de perceber a expressão do sambhogakaya.

No budismo Esotérico, ao recorrermos a objetos de refúgio externo, interno e secreto, purificamos karma nos níveis externo, interno e secreto, simultaneamente. É como se, em vez de cortar com uma lâmina, cortássemos com três.

(Chagdud Tulku Rinpoche, Portões da Prática Buddhista)

As escolas "novas" do budismo tibetano (Sakya, Kagyü e Gelug) dividem os tantras em quatro categorias, de acordo com a classificação do Vajrapanjara Tantra. As três primeiras categorias são chamadas de "tantras inferiores" por serem práticas preparatórias para a quarta categoria, o "tantra superior":

•Tantras de Ação (sânsc. Kryia-tantra): são os mais antigos (séculos II-VI) e foram os primeiros a seres traduzidos para o chinês (a partir do século III). Nesta classe, estão os textos que enfatizam o vegetarianismo, ritos e atividades externas de limpeza e purificação, como o Arya-manjushri-mulakalpa, o Subahu-paripriccha Sutra e o Aparimia-ayurjnana-hridaya Dharani.

•Tantras de Atuação (sânsc. Charya-tantra, Ubhaya-tantra, Upaya-tantra, Upa-tantra): inclui apenas alguns textos, que surgiram a partir do século VI, como o Maha-vairochana-bhisambodhi Tantra. Nesta classe, as atividades externas (vegetarianismo, ritos, atividades externas de limpeza e purificação, gestos simbólicos ou mudras) e internas (meditação ou yoga) são enfatizadas igualmente, com destaque para as práticas meditativas sobre o dhyani-buddha Vairochana.

•Tantras de União (sânsc. Yoga-tantra): enfatizam a yoga interna, isto é, as práticas meditativas. Os tantras desta categoria também enfatizam uma dieta vegetariana. Os textos desta classe estão ligados ao buddha Vairochana (Sarva-durgati-parishodhana Tantra) e ao bodhisattva Manjushri (Manjushri-nama sangiti).

•Tantras de União Superior (sânsc. Anuttara-yoga-tantra): enfatizam a prática de yoga interna superior. Esta classe é subdividida em três categorias:

1.Tantras Superiores de União (sânsc. Yogottara-tantra), Tantras de Habilidade (sânsc. Upaya-tantra) ou Tantras Pai (sânsc. Pitri-yoga): são associados ao buddha Akshobhya e à sua consorte, Mamaki. Nesta categoria, estão o Guhyasamaja Tantra e o Yamantaka Tantra.

2.Tantras de Sabedoria (sânsc. Prajna-tantra), Tantra das Praticantes de Yoga (sânsc. Yogini-tantra), Tantras Absolutos de União (sânsc. Yoga-anuttara-tantra ou Yoganinuttara-tantra) ou Tantras Mãe (sânsc. Maitri-tantra): também estão associados ao buddha Akshobhya e sua consorte, porém em seus aspectos irados (sânsc. heruka) e acompanhados por dakinis. Os principais textos desta categoria são o (Heruka Chakra-)Samvara Tantra, o Hevajra Tantra, o Kalachakra Tantra, o Samvarodaya Tantra e o Chanda-maharoshanasa Tantra. Muitos buddhas e textos desta categoria são semelhantes as divindades e textos hindus ligadas a Shiva.

3.Tantra de União Não-dual (sânsc. Advityaya-yoga-tantra): esta é uma categoria especial em que, às vezes, é classificado o Kalachakra Tantra.

A palavra tantra quer dizer "continuidade". A continuidade do desenvolvimento ao longo do caminho e a continuidade da experiência de vida ficam cada vez mais transparentes. Cada insight torna-se uma confirmação. O simbolismo inerente ao que percebemos torna-se naturalmente importante, como se fosse algo que jamais tivéssemos conhecido antes. O simbolismo visual, o simbolismo sonoro dos mantras e o simbolismo mental das sensações, da energia — tudo torna-se relevante. Descobrir um novo modo de olhar a vivência não se torna um esforço. nem um poder excessivo; é um processo natural. [...]

O tantra pai é associado à agressividade ou aversão. Ao se transmutar a agressividade, vive-se uma energia que contém uma tremenda força. Nenhuma confusão pode participar disso; a confusão é repelida automaticamente. É chamada de ira-vajra, já que é o aspecto adamantino da energia. O tantra mãe é associado à sedução ou apego e é inspirado pela sabedoria discriminativa. Cada aspecto do universo ou da vida é visto como contendo uma beleza própria. Nada é rejeitado, nada é aceito; porém, o que quer que percebamos tem suas qualidades próprias. Como não há rejeição nem aceitação, as qualidades individuais das coisas tornam-se mais claras e é mais fácil nos relacionarmos com elas. [...] O tantra [não-dual] da união implica transmutar a ignorância no espaço que tudo permeia. Na ignorância comum, tentamos manter nossa individualidade, descobrindo o ambiente que nos cerca. Porém, na tantra da união não há subsistência da individualidade. É a percepção de todo o ambiente espacial, oposto ao espaço congelado da ignorância. Para transmudar a aversão, o apego e a ignorância, é preciso estar apto à comunicação direta e completa com a energia, sem estratégias.

(Chögyam Trungpa, The Mith of Freedom and the Way of Meditation)

A escola tibetana Nyingma inclui também os ensinamentos da Grande Perfeição (sânsc. Ati-yoga, tib. Dzogchen/ rDzogs chen). Por isso, ela classifica os tantras de forma um pouco diferente:

Tantras Externos: correspondem aos três tantras inferiores que foram citados anteriormente • Tantras de Ação (sânsc. Kryia-tantra)

• Tantras da Atuação (sânsc. Charya-tantra)

• Tantras de União (sânsc. Yoga-tantra)

Tantras Internos: correspondem respectivamente aos três tantras superiores (Tantras Pai, Tantras Mãe e Tantra Não-dual) • Tantras de Grande União (sânsc. Maha-yoga Tantra)

• Tantras de Suprema União (sânsc. Anu-yoga Tantra)

•Tantras da Grande Perfeição (sânsc. Ati-yoga Tantra)

As escolas japonesas Shingon (chin. Mi-tsung) e Tendai (chin. T'ien-t'ai) centralizam suas práticas nos tantras de Ação e de Atuação, tendo o dhayni-buddha Vairochana como divindade principal de suas meditações esotéricas. A tradição oral (jap. kûden) das escolas Shingon e Tendai são chamadas respectivamente de Tômitsu e Taimitsu. Na escola Shingon, os ensinamentos da tradição Tômitsu são considerados os mais elevados; na escola Tendai, os ensinamentos da tradição Taimitsu tornaram-se profundamente interconectados com os ensinamentos do Sutra do Lótus do Dharma Maravilhoso (sânsc. Saddharma Pundarika Sutra). As linhagens japonesas não regulamentadas são genericamente chamadas de Zômitsu.

Os mestres realizados, que "importaram" os tantras de várias dimensões para o mundo humano, transmitiram a dimensão pura da transformação através da mandala. Esta transmissão toma lugar a cada vez que um mestre confere a iniciação de um tantra a um discípulo. Durante a iniciação, o mestre descreve a imagem de uma mandala a ser visualizada e, em particular, a divindade em que o praticante tem de se transformar. Então, visualizando a dimensão da transformação, o mestre confere a autorização [empowerment] para a prática, transmitindo o som natural do mantra específico da divindade. Após o discípulo receber a iniciação, e assim tendo sua primeira experiência de transformação na visão pura, ele estará pronto para aplicar isto como o caminho, através da visualização e da recitação do mantra. Por estes meios, o praticante do tantra tenta transformar a visão impura comum na visão pura da mandala da divindade. Todos os tantras são baseados no princípio da transformação, trabalhando com o conhecimento de como a energia funciona. O próprio significado da palavra tantra "continuação" se refere à natureza da energia do estado primordial, que se manifesta sem interrupção.

(Chögyal Namkhai Norbu, Dzogchen)

É comum que o treinamento espiritual adquira maior eficácia quando transmitido na forma de instruções secretas, guardado como um tesouro secreto e praticado em segredo, e confiando-se exclusivamente no mestre. O principal objetivo do treinamento é tornar-nos receptivos, e não limitar-nos ou isolar-nos. Todavia, especialmente no início, precisamos reunir as nossas energias e desenvolver a nossa concentração. O segredo pode ajudar-nos a fazer isso. Se usamos o que aprendemos nas conversas casuais travadas à mesa do jantar ou como uma mercadoria, um instrumento para atingir objetivos mundanos, arriscamo-nos a dispersar a nossa energia e a nossa inspiração. Quando mantemos o treinamento em segredo, a energia concentrada se desenvolve com maior eficácia, do mesmo modo como um motor de propulsão reúne forças para erguer um foguete para fora do campo de gravidade da Terra, pois o combustível é consumido sob grande pressão, em vez de escapar sem controle.

(Tulku Thondup, O Poder Curativo da Mente)

A meditação tântrica é dividida em várias etapas, partindo das contemplações mais básicas para as mais profundas:

• práticas preliminares (sânsc. purvagama, tib. ngöndro / sngon 'gro): as preliminares externas são as quatro contemplações que levam a renunciar ao samsara: a preciosidade do nascimento humano, a impermanência, o karma e o sofrimento. As preliminares internas são o refúgio, a bodhichitta, a purificação através da prática de Vajrasattva, a acumulação de mérito pela oferenda de mandalas, e a acumulação de sabedoria através da união com a mente do mestre (sânsc. Guru Yoga, tib. Lame Nenjor / bLa ma'i rNal 'byor). Às vezes há práticas adicionais, como o Chö (tib. bCod), que visa cortar o apego ao falso ego, e o P'howa (tib. 'pho ba), a transferência de consciência na hora da morte.

•estágio de geração (sânsc. utpatti-krama, tib. kyerim / bskyed rim): nesta fase, seguindo as instruções de uma liturgia (sânsc. sadhana) tântrica, desenvolve-se a visão iluminada, treinando a mente através da visualização criativa. O ambiente é visualizado como sendo a terra pura da mandala, desenvolvendo-se a imagem vívida de si mesmo como sendo a divindade meditacional, com todas as marcas físicas de um buddha e todas as qualidades mentais de um ser iluminado. Através da repetição do mantra da divindade, todos os sons passam a ser percebidos como a fala iluminada, assim como todos os pensamentos se tornam a concentração da divindade. O objetivo deste estágio é desenvolver os próprios poderes imaginativos a tal ponto que aquilo que é visualizado se torne real. Inicialmente, o processo é um pouco artificial, mas as visualizações correspondem à experiência dos seres iluminados. Adotando os novos hábitos de percepção, pode-se diminuir os hábitos comuns da percepção grosseira baseada na ignorância, apego e ódio e, em seu lugar, colocar um nível de percepção mais sutil baseada na sabedoria, compaixão e meios hábeis.

•estágio de perfeição (sânsc. nishpanna-krama, tib. dzogrim / rdogs rim): uma vez que a visão búddhica tenha se tornado uma experiência vívida, o estágio de perfeição completa o processo, trabalhando com as energias sutis do corpo através de yogas avançadas.

O desfecho da prática tântrica segue as particularidades de cada escola: na linhagem Nyingma, é a Grande Perfeição (sânsc. Atiyoga, tib. Dzogchen / rDzogs chen); na linhagem Sakya, é a finalização do Caminho e Fruto (tib. Lamdre / Lam 'bras); e nas tradições Kagyü e Gelug, é a Grande Marca ou Grande Sinal (sânsc. Mahamudra, tib. Gyachenpo). Porém, a realização final de cada um desses sistemas é o mesmo: a liberação total do sofrimento, a iluminação completa, o despertar total.

A característica especial do Vajrayana é a percepção pura. Através de uma iniciação transmitida por um mestre tântrico, vemos e realizamos o mundo como uma terra pura, e os seres como iluminados. Com o poder ou sabedoria transmitida na iniciação, e com os extraordinários meios hábeis dos canais, energias e essências do corpo-vajra, os tantristas geram a experiência da grande união do êxtase e da vacuidade, e este atingimento leva a mente, à força, ao ponto de realização. Nas práticas tântricas, nada há a ser refreado ou destruído, mas sim a ser transformado como o combustível de sabedoria, a grande união do êxtase, da claridade e da própria vacuidade. No Mahayana comum, os praticantes transmutam a vida diária em treinamento espiritual através da atitude correta, o pensamento de beneficiar os outros. Assim a vida do dia-a-dia é transformada em prática meritória, a causa da iluminação. No tantra, porém, transmutamos tudo na sabedoria em si, que é o resultado ou meta do caminho. Deste modo, o Vajrayana é conhecido como o veículo do resultado, pois ele toma o próprio resultado como o caminho do treinamento.

(Tulku Thondup Rinpoche, Hidden Teachings of Tibet)

De acordo com o Vajrayana, deve-se combinar os meios hábeis — o estágio de geração — com o aspecto da sabedoria — o estágio de perfeição. O estágio de geração requer visualização — criar a imagem de um ser divino —, preces, confissões, oferendas e as outras sessões sessões da prática de sadhana. O estágio de perfeição envolve o reconhecimento da natureza da mente, olhando para quem visualiza, assim levando a natureza búddhica à experiência prática. O estágio de geração é necessário porque, bem agora, somos seres normais, e um ser normal é não-iluminado, instável na realização da natureza búddhica. Não temos poder completo por nós mesmo, então pedimos a ajuda dos buddhas e bodhisattvas. Ao oferecer [a prece dos] sete ramos, por exemplo, purificamos nossos obscurecimentos, removendo aquilo que nos impede de otger o insight verdadeiro. O aspecto da sabedoria é a natureza da nossa mente. Tanto os meios hábeis quanto a sabedoria são necessários.

(Tulku Urgyen Rinpoche, Repeating the Words of the Buddha)

[O estágio de geração] consiste na visualização gradual da mandala, começando com a sílaba semente da divindade principal e então as sílabas dos quatro elementos. Quando a criação imaginária da mandala está completa, enquanto se mantém a visualização de si mesmo transformado na forma da divindade central, recita-se o mantra. Neste fase, trabalha-se um grande parte com a faculdade imaginativa da mente, tentando desenvolver ao máximo a capacidade de visualizar. A segunda fase, o estágio de perfeição, focaliza a visualização da mandala interna dos centros [sânsc. chakra] e canais [sânsc. nadi] de energia, e na concentração sobre as sílabas do mantra, que giram sem interrupção ao redor da sílaba semente central. O final da sessão da prática, tanto a mandala externa quanto a interna são integradas na dimensão pura do corpo, fala e mente iluminados do praticante. O resultado final da prática é que a visão pura manifesta-se sem depender mais da visualização, tornando-se parte da própria claridade natural. Assim, realiza-se o estado de reintegração total da visão pura com a impura, o Mahamudra, o grande símbolo em que o samsara e o nirvana estão indissoluvelmente unidos.

(Tulku Urgyen Rinpoche, Rainbow Painting)

As mandalas [diagramas] nos são dadas para podermos nos identificar com nossas emoções específicas, que têm a possibilidade de se transmutar em sabedoria. Às vezes, praticamos a visualização dos yidams [divindades meditacionais]. Quando começamos a trabalhar com eles, entretanto, não os visualizarmos imediatamente. Começamos com uma consciência da vacuidade e, em seguida, desenvolvemos a sensação da presença daquela imagem ou forma. Depois recitamos um mantra que tenha uma ligação com essa sensação. Para enfraquecer a força do ego, precisamos estabelecer um elo entre a presença imaginária e o observador de si mesmo, o ego; o mantra [invocação] é esse elo. Após a prática do mantra, dissolvemos a imagem ou a forma em certa cor de luz apropriada ao yidam específico. Finalmente, terminamos a visualização com uma nova conscientização da vacuidade. A idéia toda é que esses yidams não devem ser encarados como "deuses" externos que nos salvarão, mas como expressões de nossa verdadeira natureza. Nos identificamos com os atributos e com as cores de certos yidams e ouvimos o som que vem do mantra, e só então começamos a compreender que nossa verdadeira natureza é invencível. Nos identificamos completamente com o yidam.

(Chögyam Trungpa, Cutting Through Spiritual Materialism)

Alguns de vocês podem perguntar, "Por que precisamos deste processo de purificação? Por que precisamos de métodos e práticas se o fundamento e resultado reais já são perfeitamente puros?" A pergunta é também a resposta. Assim que vocês conhecerem sua natureza verdadeira, perfeita, quando quer que isto seja — talvez hoje à noite, ou de manhã —, vocês não precisarão mais praticar ou ficar preocupados com os objetos e métodos de purificação. Vocês não precisarão ficar preocupados com o processo de purificação porque já estarão em um estado desperto puro, primordial. Até então, você continuarão a ter muitos e muitos pensamentos e conceitos perturbadores. Até que estas perturbações sejam pacificadas, vocês farão um favor a vocês mesmos se contarem com o processo da prática, encontrando o objeto a purificar e atingindo o resultado.

(Gyatrul Rinpoche, Generating the Deity)

Na antiga Índia, o tantra era praticado em segredo, mas no Tibet a maioria dos tantras são praticados sem muita restrição. Os professores observam que a prática do tantra depende da devoção aos ensinamentos, de modo que a devoção qualifica uma pessoa a receber as instruções. A Índia nunca foi totalmente devotada ao buddhismo, mas o Tibet foi um país inteiramente buddhista; então não havia a mesma necessidade de segredo e diferenciação na autorização para o estudo dos tantras.

(Tulku Thondup, Masters of Meditation and Miracles)

Luminosa, monges, é a mente; e ela é maculado por máculas vindouras. Luminosa, monges, é a mente; e ela é liberada das máculas vindouras.

(Pabhassara Suttas, Anguttara Nikaya I.49-50)

A mente é vazia de mente, pois a natureza da mente é a clara luz.

(Ashta-sahasrika-prajna-paramita Sutra)

Todos os seres são buddhas, mas isto é escondido por máculas adventícias. Quando suas máculas são purificadas, seu estado de Buddha é revelado.

 Ler obras espirituais nos faz evoluir espiritualmente.

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Conheça o texto: Como Evoluir Espiritualmente.

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