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Introdução ao Zen
Zen e a Arte do Aqui-e-Agora O termo japonês Zen (em chinês Ch'an) é a forma
abreviada de Zenna, derivado do chinês Ch'an-na, que por sua
vez vem de Dhyana — meditação em sânscrito. Em coreano, é
chamado de Sŏn; em vietnamita, chama-se Thien. O Ch'an ou Zen é uma das principais escolas do buddhismo, difundido
principalmente na China (inclusive Hong Kong e Taiwan), Coréia, Japão e
Vietnã. Muitos mestres chineses e japoneses consideram o Zen como parte do
buddhismo Mahayana, enquanto alguns autores coreanos preferem classificá-lo
como um veículo à parte do Hinayana e do Mahayana. O buddhismo Zen é baseado na idéia de que, já que todos os seres
sencientes têm uma natureza búddhica, para atingir a iluminação é apenas
necessário descobrir este buddha interior. Já que você já é um buddha, você
está iluminado no momento em que entender sua verdadeira natureza. Digo que
o Zen é mal entendido porque as pessoas muitas vezes acreditam que este
"descobrimento" da natureza búddhica interior pode ser atingido sem
trabalho. Este não é o caso. A prática Zen real é muito disciplinada e
muitos anos de estudo devem necessariamente preceder a liberação "súbita" na
verdade. (Hsing Yün, Only a Great Rain) Parece paradoxal que o Zen, a escola de meditação do Extremo
Oriente que mais enfatiza o irracional, atraia mais os intelectuais do que
os não-intelectuais. No entanto o Zen, como todas as escolas do buddhismo,
tem uma base racional. Não depende nem da fé nem de dogmas petrificados, mas
somente da experiência direta e da observação sem preconceito. Como uma
escola buddhista, contudo, o Zen tem seu alicerce nos insights comuns a
todas as escolas buddhistas, sem os quais o Zen não seria Zen. Essa base
comum repousa na experiência, isto é, naquela área onde a ciência e o
misticismo se encontram. A única diferença entre esse dois campos de
experiência é que a verdade da ciência — sendo dirigida aos objetos externos
— pode ser provada de maneira "objetiva", ou melhor, demonstrada, enquanto o
misticismo, dirigido ao sujeito, pertence à experiência "subjetiva". O Zen,
como todas as escolas buddhistas, se mantém à parte das opiniões
pré-concebidas, dogmas e artigos de fé, juntamente com tudo que normalmente
recebe o nome de "religião". (Lama Anagarika Govinda, O Budismo Vivo e o Mundo
Contemporâneo) O monge chinês Nan-ch'uan P'u-yan (jap.
Nansen Fugan, 748-835) caracterizou esta escola com
quatro aspectos:
Segundo a história tradicional, esta transmissão teria se originado
na Índia, durante uma palestra a uma grande assembléia na
montanha Gridhrakuta, que reunia mais de mil e duzentos discípulos arhat
(homens santos que atingem o nível de nirvana); [o Buddha Shakyamuni,] com
um sorriso inspirador em sua face, elevou o braço, segurando apenas uma flor
de lótus dourada. Neste momento, houve um silêncio total. O que o Mestre quis dizer com isso? Nenhum dos discípulos
arriscou-se a dar nenhuma interpretação e, durante esse longo momento de
impasse, seu discípulo Mahakashyapa respondeu-lhe com outro sorriso
misterioso. Ninguém da assembléia entendeu o sentido e significado do feito
de Buddha e, mais tarde, ele anunciou que o mais profundo Dharma da verdade
tinha sido transmitido ao discípulo Mahakashyapa. Desde então, durante vinte e oito gerações (quase mil anos),
ocorreu essa transmissão de "mente a mente" até que Bodhidharma [jap.
Bodai Daruma, 470-543], um patriarca indiano, levasse essa tradição à
China, durante a dinastia Han. Em 527, o patriarca fundou a escola de
Dhyana dentro do templo Shao-lin (onde se pratica kung-fu), como uma
escola diferenciada do buddhismo e que veio a se consolidar mais tarde. A
palavra Dhyana foi traduzida para o chinês como Ch'an-na ou
abreviadamente Ch'an, que é o estado que propicia quietude da mente,
desapego em relação à nossa preocupação e às necessidades imediatas. O Ch'an
se desenvolveu rapidamente na China, tornando-se, dentro do buddhismo, um
ramo independente do pensamento filosófico, tendo exercido influência nas
artes, na cultura e nos costumes chineses. [...] [M]uitos monges Ch'an não acendem incenso, não reverenciam estátuas
de Buddha e chegam inclusive à ousadia de queimar as estátuas numa fogueira,
prevenindo-se dos rigores do inverno. A maneira dos monges Ch'an é
fascinante, cheia de humor e perspicácia. Seu enfoque está na compreensão
imediata, no despertar interior, transpondo toda barreira lógica dualista e
as regras impostas pelo padrão religioso e cultural. A sutileza da poesia e
da pintura chinesa carrega exatamente o brilho do Ch'an. (Hsing Yün, O Início de Tudo) Por quase setecentos anos, a meditação (dhyana) buddhista já
era praticada na Índia, quando foi, por volta do segundo século d.C.,
introduzida na China. Mas, somente após três séculos, o buddhismo foi
suficientemente integrado no ambiente chinês a ponto de criar algo
diferente, próprio à nova cultura que o adotou. O modelo arquetípico dessa
integração foi a personagem de Puti Damo (P'u-t'i Ta-mo), mais conhecido no
Ocidente como Bodhidharma, um mestre indiano buddhista, considerado como
primeiro Patriarca ou Ancestral do buddhismo Ch'an. Independentemente da
existência real ou não de Bodhidharma, sua figura e as lendas que surgiram a
partir dele formam o ambiente mítico das origens da Escola de Meditação nos
países do norte asiático. (Do prefácio de Ricardo Sasaki em Nuvem Vazia) Depois do estabelecimento do Ch'an no monastério Shao-lin,
originou-se a linhagem chinesa de monges patriarcas, ou ancestrais. A partir
do sexto ancestral chinês, Hui-neng (638-713), o Ch'an absorveu muitos
ensinamentos do taoísmo e contou com vários monges sucessores (jap.
hassu). Se seguir a verdade básica e a deixar ser tão espontânea como ela
é, então compreenderá o que não tem começo nem fim, penetrando o universo.
Isso é muito sutil e complicado. Os taoístas chama-n de conhecimento dos
sábios, os confucionistas de comunicação espiritual e os buddhistas de
iluminação silenciosa. Todos são termos para indicar a verdadeira
consciência, a acurada consciência, a grande consciência, a consciência
primordial. A consciência sem esta percepção é chamada de falsa consciência.
A não ser que a falsa consciência seja eliminada, ela obscurecerá a
verdadeira percepção. [...] Mesmo quando o obstáculo da dúvida é removido,
há ainda o obstáculo do princípio, que é ainda mais pernicioso para o
caminho. O obstáculo é causado pelo apego individual e parcialidade, o que
impede a compreensiva percepção. O obstáculo dos confucionistas é a
materialização, o obstáculo dos confucionistas é inexistência, o obstáculo
dos buddhistas é o vazio. [...] Todos aqueles obstruídos pelos três obstáculos da materialização,
da inexistência e do vazio são incapazes de se reconciliar com os três
ensinamentos do confucionismo, do taoísmo e do buddhismo. Daí resultam
diferenças sectárias e disputas. Os confucionistas criticam a inexistência
dos taoístas; os taoístas criticam a vacuidade dos buddhistas; os buddhistas
criticam a senda dos confucionistas — e assim vai infindavelmente, para trás
e para frente. Não compreendem que a base é realmente uma só, mesmo que as
doutrinas sejam diferentes. A percepção deles está dividida porque estão
obstruídos pelos seus princípios. O obstáculo da materialização leva à
ilusão, o que torna difícil o despertar. O obstáculo da inexistência leva ao
definhamento, no qual não há realismo. O obstáculo do vazio leva ao
quietismo, que reverte para o niilismo. Os antigos sábios eram realistas
todavia abertos, vazios todavia realistas. Viam que o vazio não é o vazio,
que o vazio não esvazia coisa alguma. Este é o caminho supremo. É alcançado
pela integração. Somente por sucumbirmos diante do obstáculo do princípio
que não conhecemos a isso. Deste modo, os discípulos do caminho devem ser
cuidadosos. [...] Na ausência de compreensão, toda a sorte de argumentos diferentes,
opiniões e teorias surgem, resultando em diferentes escolas e seitas, cada
uma sustentando um ponto de vista e repudiando outros. Teimosamente
agarradas às suas teorias, elas atacam umas às outras; cada uma sustentando
o seu ponto de vista, elas argumentam e asseveram as suas próprias
doutrinas. Elas todas querem ser protetoras do caminho, mas embora não o
digam, elas vão aos extremos. A mente que compreende o caminho é
inteiramente imparcial e verdadeira. (Lü-yen) [O] propósito do treinamento Ch'an é clarear nossa visão a fim de
conquistarmos a visão clara sobre nossa verdadeira identidade. O Ch'an nos
capacita a transcender nossa natureza humana e realizar a natureza de
Buddha. Séculos atrás, nossa escola de meditação Ch'an foi fundada por dois
grandes homens: o primeiro patriarca, Bodhidharma, que veio do Ocidente para
a China, e Hui-neng, o sexto patriarca, nascido na China. Por causa desses
dois homens, o Ch'an floresceu, espalhando-se pela China e por muitas terras
distantes. E qual foi o mais importante ensinamento de Bodhidharma e
Hui-neng? "Livrem-se do egoísmo! Livrem-se dos pensamentos que poluem a
mente!" Se estas instruções não forem seguidas, não será possível nenhum
sucesso na prática do Ch'an. [...] (Hsü Yun, Nuvem Vazia) Após Hui-neng, o Ch'an dividiu-se em duas correntes, uma do norte e
outra do sul. A corrente do norte, que enfatizava a teoria da iluminação
gradual, declinou rapidamente. Já a corrente do sul, que enfatizava a
iluminação súbita, floresceu especialmente durante a dinastia T'ang
(618-907) e no início da dinastia Song (960-1279). Esta doutrina tinha como
o base o Lankavatara Sutra, texto central da filosofia idealista
Yogachara. A corrente do sul deu origem a diversas linhagens chamadas de
cinco casas e sete escolas (jap. goke-shichishû):
Após a perseguição ao buddhismo iniciada pelo imperador taoísta
Wu-tsung em 845, o buddhismo chinês teve muitas perdas. Mais tarde, o Ch'an
tornou-se muito eclético, fundindo-se com a escola da
terra pura (chin. Ching-t'u) e formando a tradição predominante
até hoje no buddhismo chinês. No Japão, a única escola Zen que continua
mantendo elementos Terra Pura é a linhagem Rinzai Ôbaku, levada ao Japão em
1644 pelos monges Yi-ran (jap. Itsunen) e Nagasaki. [As escolas Terra Pura e Zen] complementam-se muito bem, dado que a
primeira ensina a humildade de depender do Buddha e a segunda ensina a
sabedoria de depender de si próprio. (Hsing Yün, Budismo) Em 1659, os monges desta tradição estabeleceram-se em Uji (próximo
a Kyôtô) graças à chegada do monge Yin-yuan (jap. Ingen, 1592-1673) com
vinte discípulos e dez artesãos. Eles construíram o Mampuku-ji no monte
Ôbaku. Atualmente, esta escola possui dez subdivisões, aproximadamente 18
mil templos e monastérios e conta com cerca de 200.000 seguidores. O Ch'an atingiu o seu auge com os monges Ma-tsu Tao-i (jap. Baso
Dôitsu, 709-788), Pai-chang Huai-hai (jap.
Hyakujô Ekai, 720-814), Te-shan Hsuan-chien
(jap. Tokusan Senkan, 781-867), Tung-shan Liang-chieh (jap.
807-869), Chao-shou Ts'ung-shen (jap. Jôshû Jûshin, 778-897) e
Lin-chi I-hsuan (jap. Rinzai Gigen, ?-866/7). Na terceira geração da transmissão após Hui-neng, houve o mestre
Zen Tao-i e seu discípulo, o mestre Zen Pai-chang. Estes dois homens
corajosamente modificaram o sistema monástico prevalecente e transformaram
as diretrizes que estavam em vigor desde que o buddhismo entrara na China.
Assim eles criaram um sistema monástico verdadeiramente chinês. Na época,
Pai-chang e seus discípulos foram injuriados por outros seguidores do
buddhismo, acusados de terem quebrado os sabiam seus oponentes que foi por
causa do sistema tramado por Pai-chang que o buddhismo conseguiu ter
transmitido por tanto tempo depois disso. Este sistema de diretrizes foi
transmitido através dos tempos até o presente e é seguido pelos templos e
monastérios buddhistas, tanto na China quanto na exterior. Além disso, ele
influenciou a sociedade chinesa posterior e seu sistema político,
desempenhando grande papel em ambos. (Nan Huai-Chin, Breve História do Budismo) As linhagens que mais se destacaram na China foram a Lin-ch'i e a
Ts'ao-tung. A primeira linhagem, Lin-ch'i, enfatiza o uso dos
casos públicos (chin. kung-an, jap. kôan), histórias
com expressões paradoxais que procuram apontar a natureza búddhica
instantaneamente, "aqui e agora". Entre as principais coleções de kôans,
estão a Passagem sem Portão (jap. Mumonkan), o Registro do
Penhasco Azul (chin. Pi-yen-lu, jap. Hekiganroku), o
Tsung-jung-lu (jap. Shôyôroku) e uma coleção coreana de Mil e
Setecentos Kôans (cor. Yom-sang). Os kôans não representam a opinião pessoal de um
só homem, mas o princípio mais elevado, que nós e as centenas de milhares de
bodhisattvas dos três reinos e das dez direções recebemos de igual maneira.
Este princípio concorda com a fonte espiritual, ajusta-se ao significado do
misterioso, destrói o nascimento-e-morte e transcende as ilusões. Não se
pode entender por meio da lógica; não se pode transmitir com palavras; não
se pode explicar mediante a escrita; não se pode medir com a razão. (Isshu Miura e Ruth F. Sasaki, The
Zen Koan) Kôans são o método Zen de demonstrar a verdade direta e
concretamente, sem recorrer à lógica ou à razão. Refletindo intimamente a
seu respeito e despertando para seu sentido profundo, você viria a
compreender o Zen. [...] Um mestre Zen disse: "O Zen é como um homem
pendurado pela boca de um galho no alto de uma árvore. Suas mãos ou seus pés
não conseguem alcançar nenhum ramo. Sob a árvore, outro homem pergunta:
'Qual a mais profunda verdade dos ensinamentos de Buddha?' Se ele não
responder, faltará ao dever. O que ele deve fazer?" (Philip Kapleau, Zen-Budismo) O kung-an [jap. kôan], praticado especialmente pela
escola Lin-chi [jap. Rinzai], consiste numa frase ou estória que é
paradoxal e não tem aparentemente uma resposta lógica. Há milhares de
kung-ans. O método não consiste apenas em tomar uma frase paradoxal e tentar
resolvê-la. Mas é exercido dentro de um contexto, muito controlado, entre
discípulo e mestre, onde este último dá ao aluno um kung-an específico que o
leva para meditar o resto do dia, semana, mês ou ano. Isso é feito dentro de
uma estrita disciplina de mosteiro e sob completa confiança do discípulo no
mestre. Diariamente, ou mesmo várias vezes ao dia, o aluno vai levar sua
resposta ao mestre e receber sua devida retribuição, seja a resposta
estúpida ou sábia. O paradoxo tem como um dos objetivos quebrar o discurso
lógico e racional e fazer surgir no discípulo uma resposta intuitiva. A
resposta deve ser iluminada, pois equivale a um insight na realidade das
coisas. Seu objetivo último é o de conseguir, através de uma frase, gesto ou
pergunta, acordar a natureza original do praticante. Um flash de claridade
que acaba por derrubar muitas das barreiras que impedem o completo
despertar. (Ricardo Sasaki, O Caminho Contemplativo) A finalidade suprema dos kôans pode ser vislumbrada nesta história,
uma amostra de humor Zen moderno a respeito de um discípulo que mandava ao
mestre relatos fiéis de seu progresso espiritual. No primeiro mês, o aluno
escreveu: "Sinto a expansão da consciência e a unidade do universo." O
mestre deu uma olhada no bilhete e jogou fora. No mês seguinte, o aluno
escreveu: "Finalmente descobri que o divino está presente em todas as
coisas." O mestre pareceu desapontado. Na terceira carta, o discípulo
escreveu com entusiasmo: "O mistério do um do muito foi revelado ao meu
olhar assombrado." O mestre bocejou. A carta seguinte dizia: "Ninguém nasce,
ninguém vive, ninguém morre, porque o eu não existe." O mestre ergueu as
mãos em desespero. Passou um mês, dois, cinco, um ano inteiro. O mestre achou que era
a hora de lembrar ao aluno que ele tinha o dever de informá-lo sobre seu
progresso espiritual. O discípulo respondeu: Estou só vivendo a vida. E
quanto à prática espiritual, de que serve?" O mestre leu a resposta e
exclamou: "Graças a Deus ele entendeu!" Essa história reflete o que o Zen
ensina sobre a perfeição das coisas como são. A garça branca na neve á uma
garça branca na neve; o corno negro à meia-noite é na verdade ele mesmo. (Jack Kornfield, Depois do Êxtase, Lave a Roupa
Suja) Outro método é o hua-t'ou (jap. watô) que procura
estimular a dúvida como objeto de contemplação. Isto é feito através de
perguntas que não possuem uma resposta lógica, por exemplo: ·
Quem sou eu? ·
Quem está meditando? ·
Um cachorro possui natureza búddhica? ·
Quem está cantando o nome de Buddha? ·
Qual é o som de uma só mão batendo palmas? ·
Como era meu rosto antes de mais pais nascerem? [O hua-t'ou] consiste de uma pergunta que é colocada constantemente
para a consciência. Um exemplo disto é: "Quem sou eu?" A diferença com o
kung-an é que não é necessariamente uma frase paradoxal, apesar de sua
resposta não ser obviamente racional. O aluno deverá tomar esta pergunta e
colocar toda a energia na investigação. Tal método só é bem-sucedido se a
pessoa realmente dedicar toda sua vida e energia à investigação. (Ricardo Sasaki, O Caminho Contemplativo) Hua-t'ou significa "palavra cabeça" e podemos contrastar o hua-t'ou
com o hua-wei, que significa "palavra cauda". Se um cachorro cruzasse nosso
caminho, então, antes que pudéssemos ver o corpo do cachorro, veríamos sua
cabeça. E, depois de termos visto seu corpo, veríamos sua cauda. Assim, a
cabeça ou hua-t'ou é o ponto no qual o pensamento se origina — o ponto
anterior à sua entrada no "corpo" da consciência do ego. A cauda é o
pensamento subseqüente. [...] O que, então, o hua-t'ou? É uma afirmação
designada e concentrar nossos pensamentos sobre um único ponto, um ponto que
existe na "cabeça" da mente original, um ponto imediatamente anterior à
entrada do pensamento em nossa consciência de ego. É um pensamento "fonte".
Examinemos o hua-t'ou: "Quem é que agora repete o nome do Buddha?" De todas
as questões hua-t'ou, essa é a mais poderosa. Agora, este hua-t'ou pode ser
colocado de forma muito diferente, mas todas as formas indicam uma questão
básica. "Quem sou eu?" Não importando como a questão é colocada, a resposta
deve ser encontrada no mesmo lugar onde ela se origina: na fonte, na
natureza de Buddha. O ego não pode respondê-la. Obviamente, respostas
rápidas e fáceis são inúteis. [...] (Hsü Yun, Nuvem Vazia) "Pequenas dúvidas levam a pequenos despertares. Grandes dúvidas
levam a grandes despertares." Sem perguntas, não obtemos respostas. Sem
dúvidas, não temos pontos de acesso a novas informações. Quem tem certeza de
tudo não aprende nada. Nunca tenha medo de fazer uma pergunta, já que,
definitivamente, o Dharma pode responder a todas as questões. No buddhismo
Ch'an, as dúvidas são utilizadas como técnica de meditação. Os mestres Ch'an
nos aconselham a sondar e explorar as sensações de dúvida. Por centenas de
anos, eles têm dito que as áreas mais obscuras do nosso ser são fontes
incríveis de energia que não aproveitamos. Vastos estados de samadhi
(concentração) podem se descortinar se ultrapassarmos as palavras e
mergulharmos fundo nas reservas primordiais de maravilhamento e dúvida que
jazem no fundo do nosso ser. As perguntas, na meditação Ch'an, são
elaboradas para que nos aprofundemos nessas jazidas de prodígio e sabedoria.
Os mestres Ch'an aconselham a fazer amizade com as dúvidas. Sugerem também
que nos perguntemos: "Como era meu rosto antes de nascer? Quem é esse ser
que está cantando o nome do Buddha?" [...] Não se aferre aos pensamentos Seu discípulo Hui-chung respondeu, também em versos: Todos os pensamentos brotam da ilusão, Mestre Chih-wei disse: Nossa natureza é vazia, Hui-chung replicou: O vazio é o verdadeiro corpo; Mestre Chih-wei ficou tão satisfeito com a resposta que, no mesmo
instante, nomeou Hui-chung abade de seu templo. (Hsing Yün, Budismo) A outra linhagem, Ts'ao-tung, enfatizava a prática da meditação
sentada (chin. tso-ch'an, jap. zazen). Esta prática não é
uma "meditação" propriamente dita, nem um método para alcançar a iluminação,
mas um estado de mente alerta, sem pensamentos ou focalização. Existe também
a meditação em pé, ou kin'hin. [Quanto ao zazen,] za significa sentar e
zen é uma transliteração do chinês ch'an, o qual, por sua vez, é
também uma transliteração do sânscrito dhyana, que significa meditação.
Zazen é, assim, sentar-se em meditação simplesmente. Partindo-se de uma
estabilização da mente através de uma prática de observação da respiração,
passa-se a seguir ao "simplesmente sentar-se" [jap. shikantaza]. E
isto é feito com aquela exata "plena atenção não-reativa" que mencionamos
acima. Adota-se aqui o modo "simultâneo" de atenção. Tudo que aparecer
diante da consciência deve ser percebido, mas sem envolvimento. O
"simplesmente sentar-se" é a pura atenção a todos os fenômenos que vão
acontecendo. (Ricardo Sasaki, O Caminho Contemplativo) Em zazen, você não faz o que faz objetivando algo. Você pode
sentir-se como que fazendo algo especial mas, na verdade, está simplesmente
expressando sua natureza verdadeira; é a atitude que aplaca seu mais
profundo desejo. Praticar o zazen com algum objetivo não é a prática
verdadeira. Se você continuar esta prática simples todos os dias, obterá um
poder maravilhoso. Uma coisa maravilhosa antes de ser atingida, mas nada
especial uma vez obtida. É simplesmente você mesmo, nada especial. (Shunryu Suzuki, Zen Mind, Beginner's Mind) Estar concentrado em algo talvez seja importante, mas apenas ter a
mente muito concentrada não é zazen. É um dos elementos da prática, mas a
serenidade da mente também é necessária. Portanto, não intensifique a
atividade dos cinco órgãos dos sentidos. Deixe-os soltos. É assim que
liberamos nossa mente verdadeira. (Shunryu Suzuki, Nem Sempre É Assim) A prática do zazen é o segredo do Zen. O zazen é difícil, eu sei.
Mas, praticando cotidianamente, é muito eficaz para ampliar a consciência e
desenvolver a intuição. O zazen não libera apenas uma grande energia; é uma
postura de despertar. Durante sua prática, não se deve procurar atingir seja
lá o que for. Sem objetivo, o zazen é apenas a concentração sobre a postura,
a respiração e a atitude de espírito. (Taisen Deshimaru, La Pratique du Zen) A ordem coreana Chogye enfatiza um kôan para apontar o verdadeiro
ser — "Quem você é? Não sei." Zen, o Buddhismo Ch'an no Japão
Durante o período Kamakura (1185-1333), o buddhismo Ch'an foi
introduzido no Japão, onde passaria a ser chamado de buddhismo Zen. Em 1191,
o monge japonês Myôsan Eisai (ou Yôsai, Zenko Kokushi, 1141-1215) levou a
linhagem Lin-chi da China para o Japão, onde passou a ser chamada de
Rinzai. Em 1227, outro monge japonês, Eihei Dôgen (ou Shôhyô Daishi,
1200-1253) levou a linhagem chinesa Ts'ao-tung, que passou a se chamar
Sôtô em japonês. A linhagem Rinzai tornou-se popular entre os samurais, shôguns e
aristocratas, influenciando o código de honra dos guerreiros ou Bushido.
Atualmente ela possui nove subdivisões e conta com aproximadamente 7 mil
templos e monastérios.Já a escola Sôtô foi difundida principalmente entre os
camponeses graças ao trabalho do monge japonês Keizan Jôkin (1268-1325).
Hoje, a escola Sôtô tem nove subdivisões e possui aproximadamente 14 mil
templos e monastérios. Kakua foi o primeiro monge japonês a estudar o
Zen na China, mas seu nome não está mencionado na lista dos fundadores do
Zen-buddhismo japonês, pois ele nada deixou a não ser uma nota musical.
Quando Kakua voltou ao Japão, depois de estudar vários anos na China, o
Imperador, que ouvira dizer que ele aprendera uma nova doutrina, mandou
chamá-lo à sua presença para interrogá-lo sobre ela. Quando o Imperador
perguntou-lhe o que era Zen, Kakua fez uma profunda reverência, tirou das
dobras de seu quimono uma flautinha, soprou uma nota, guardou o instrumento,
fez uma nova reverência e desapareceu. Nunca mais ninguém ouviu falar dele.
(Ricardo Mário Gonçalves, Textos budistas e Zen-budistas) Myôsan Eisai Zenji e a linhagem Rinzai
Eisai nasceu em Bichu, tornou-se monge aos onze anos
de idade e recebeu a ordenação completa aos quatorze. Ele estudou no
monastério Enryaku-ji da escola Tendai e mais tarde fundou o ramo Yojo, um
dos treze ramos Taimitsu — os ensinamentos esotéricos da escola Tendai.
Eisai foi bem recebido por Hôjô Masako e seu filho, o Shôgun
Minamoto No Yoriie, que o encarregou da construção do templos Jufuku-ji em
Kamakura e do Kennin-ji em Kyôtô. Eisai também fundou o templo Shofuku-ji em
Hakata e também ensinava as doutrinas das escolas
Tendai e
Shingon. A partir de 1211, ele começou a promover plantações de chá,
especialmente em Uji, para difundi-lo entre os monges. Eisai deixou
trabalhos muito significativos para o Zen e para a cultura do chá no Japão.
Entre suas principais obras, destacam-se os Combustíveis da Vida
Monástica (jap. Shukke Taikô), o Zen como Meio de Defesa da
Nação (jap. Kôzen Gokokuron), o Pedido em Favor do
Renascimento do Buddhismo no Japão (jap. Nihon Buppô Chûkô Gammon)
e o Chá como Meio de Cultivar a Vida (jap. Kissa Yôjô-ki). Acredita-se que o grande santo
buddhista Dengyô Daishi trouxe o chá da China para o Japão no ano 805 d.C.
Em todo caso, tomar chá no Japão estava diretamente associado com o
buddhismo e mais particularmente com o Zen, que havia incorporado muitos
elementos da doutrina taoísta. Os monges desta ordem tomavam chá em uma
única gamela diante da imagem de Bodhidharma. Assim o faziam como espírito
reverente e consideravam o ato de tomar o chá como um santo sacramento. Foi
esse rito Zen, de estrita natureza religiosa, que veio finalmente a
desenvolver no Japão a cerimônia do chá. A cerimônia do chá sofreu três
transformações em seiscentos ou setecentos anos de sua existência. Passou
por um estágio médio-religioso, um estágio voluptuoso e finalmente um
estágio estético. No estágio religioso, o monge buddhista Eisai escreveu um
panfleto intitulado A Influência Salutar da Ingestão do Chá, onde afirmou
que essa bebida tinha o poder de afastar os maus espíritos. Ele foi o
instrutor de um cerimonial ligado à adoração dos ancestrais, acompanhado da
batida de tambores e queima de incenso. Eisai escreveu esse tratado com a
intenção de converter Minamoto no Sanetomo, apaixonado por vinho, e
esforçou-se por demonstrar a superioridade do chá sobre o suco da uva. (F. Hadland Davis, Mitos e Lendas do Japão) A escola Rinzai destacou-se durante os períodos Yoshino (1336-1392)
e Muramachi (1392-1482), especialmente nas região de Kyôtô e Kanto. O ramo
específico do monge Eisai, chamado Rinzai Ôryô, acabou desaparecendo, mas o
ramo Rinzai Yôgi continua existindo até hoje. Eihei Dôgen Zenji e a linhagem Sôtô
[Dôgen, que pertencia a uma família da alta
aristocracia de Kyôtô,] perdeu seu pai aos dois ou três anos, e sua mãe
morreu quando tinha sete ou oito anos. Parece que ela, em seu leito de
morte, o chamou, pedindo-lhe que seguisse a vida monástica buddhista,
rezasse por seus pais e se dedicasse à salvação de todos os seres. O fato da
perda, em criança, de seus pais, parece ter marcado a sua vida, segundo
alguns biógrafos, como, aliás, confessaria posteriormente. [Em 1213], torna-se discípulo de Kôen, abade do Tendai, cortando o
cabelo e recebendo a ordenação de monge buddhista. [...] No monastério do
monte Hiei, dedicava-se então firmemente à vida religiosa e ao estudo das
escrituras sagradas do buddhismo. Todavia, especialmente uma questão o
preocupava crucialmente: "as doutrinas esotéricas e exotéricas ensinam que
todos os seres sencientes têm primordialmente a natureza búddhica; se é
assim, por que todos os buddhas e bodhisattvas demoram para obter a
iluminação, e dedicam-se às práticas ascéticas?" Em busca de solução para
este problema, Dôgen deixa o monte Hiei em 1214. Procura o monge Koin, que
residia no templo de Mii-dera, também da escola Tendai, [...] [que teria
respondido assim à pergunta de Dôgen:] "Não se pode responder facilmente a
este problema. Eu conheço um aspecto teórico ortodoxo desta questão, mas não
atingi o fundo do problema. É melhor que vás ter com Eisai no Kennin-ji." [Eisai] é considerado como o fundador do Zen japonês,
estabelecendo-o como um ramo distinto das demais escolas buddhistas no
Japão. [...] É incerto que Dôgen mantivesse algum contato direto com Eisai,
mesmo porque, no outono de 1214, este residiu em Kamakura e, logo depois,
faleceu. Não há narrativas neste sentido. Seja como for, a figura de Eisai
marcou a concepção monástica de Dôgen. [...] Entrando no templo Kennin-ji,
Dôgen colocou-se sob a orientação de Myôzen que, na ocasião, tinha 34 anos.
Após a morte de Eisai, Myôzen sucedeu-o como novo superior do templo. (Eduardo Basto de Albuquerque, O Mestre Zen Dôguen) Dôgen viajou à China em 1223, onde recebeu a transmissão da
linhagem Tsao-tung. Após retornar ao Japão em 1227, ele viveu por no
monastério Kennin-ji, em Kyôtô. Em 1233, Dôgen estabeleceu o Kannon-sonri-in
em Fukakusa, onde ensinava a meditação Zen. Depois, foi para o monastério Kôshô-[hôrin]-ji e, finalmente, para
um monastério na cidade de Echizen (atual Fukui). Lá desenvolveu o
monastério Daibutsu-ji (1243), que depois passaria a ser chamado Eihei-ji,
tornando-se um dos dois principais centros da escola Sôtô Zen. O outro
centro é o monastério Sôji-ji, que se tornou Zen quando o monge Keizan Jôkin
tornou-se abade em 1321. Após ter sido destruído por um incêndio em 1898, o
Sôji-ji foi transferido para da cidade de Ishikawa para Yokohama, onde está
atualmente. Os sucessores de Dôgen foram Ejô (1198-1280), Giin (1217-1300),
Keizan Jôkin (1264-1325) e Gasan Josekin (1276-1366). Ejô compilou muitas
instruções de seu mestre no Shôbôgenzô Zuimonki. Keizan Jôkin, outro
autor muito importante do Zen japonês, deixou o Registro da Transmissão
da Luz (jap. Denkôroku) e as Recomendações para o Zazen
(jap. Zazen Yôjinki), entre outros. [S]eria um sério erro pensar que o treinamento Zen consiste apenas
em shikantaza ou no uso de kôans. O Zen é solidamente fundado, em sua
prática e em seus detalhes, na perspectiva Yogachara, uma das duas grandes
vertentes do Mahayana e, assim sendo, o estudo é de grande importância no
verdadeiro treinamento Zen. Infelizmente, este fato tem sido
consideravelmente esquecido, principalmente quando abordado pelos
ocidentais, os quais, desprezando a evidência histórica e o exemplo dos
mestres, apegam-se a frases fora de contexto e imaginam ser o estudo algo
supérfluo e desnecessário. Se é verdade que Bodhidharma, o lendário fundador
do Zen, disse que seu treinamento estava para além das escrituras, por outro
lado nunca disse que se deveria desprezá-las. O próprio Zen nasce de uma
linguagem de mestres devotados ao estudo do Lankavatara Sutra, um texto
Yogachara estudado pelos praticantes Zen e grandemente estimado em todos os
mosteiros. John Blofeld, em Gateway to Wisdom, nos dá um importante
alerta a este respeito: "Entre praticantes Ch'an (Zen) do Ocidente, há
alguns que repudiam a necessidade do aprendizado por causa de sua
impaciência em enfatizar que o Ch'an é uma doutrina 'sem palavras' — apesar
dos milhões de palavras que foram escritas sobre ele nos últimos anos. Este
erro pode ser ao fato de terem tirado alguns ditos dos mestres Ch'an mais
iconoclastas para fora de seus contextos originais, confundindo ensinamentos
dados em circunstâncias particulares como sendo uma regra universal.
Pessoalmente, ainda estou para encontrar um mestre de meditação, chinês ou
tibetano, de qualquer escola, que não insista sobre um profundo conhecimento
das doutrinas mahayana como um pré-requisito necessário para a conquista do
objetivo; apesar de também ensinarem que, antes do despertar, vem um estágio
no qual todas as doutrinas e práticas podem ser descartadas." (Ricardo Sasaki, O Caminho Contemplativo) O Zen influenciou profundamente a cultura japonesa, como a
cerimônia do chá (jap. chanoyu), as poesias (jap. haiku)
a caligrafia (jap. shodô), a pintura (jap. sumi-e),
o teatro (jap. nô), os arranjos florais (jap.
ikebana), o bonsai, a jardinagem, o artesanato, a cerâmica e a
arquitetura. Na antiguidade chinesa, toda a arte taoísta encontrava sua síntese
no emblema em forma de disco perfurado no centro: o disco representa o céu
ou o cosmo, enquanto o vazio de seu centro simboliza a Essência única e
transcendente. Alguns destes discos são ornamentados com a figura dos dois
dragões cósmicos — análogos aos princípios completares yang e yin, o "ativo"
e o "passivo" — que giram em torno do centro perfurado, como se tentasse
apreender o intangível vazio. A concepção artística é semelhante à das
paisagens de inspiração buddhista ch'an, onde todos os elementos —
montanhas, árvores e nuvens — apresentam-se apenas para enfatizar, por
contraste, o vazio, do qual parecem ter emergido naquele instante, como
ilhas efêmeras no vasto oceano. Nas mais antigas representações de paisagens
chinesas, gravadas em espelhos de metal, em urnas ou lajes funerárias, seres
e objetos parecem anular-se diante do jogo dos elementos: vento, fogo, água
e terra. Para expressar o movimento das nuvens, das águas e do fogo, os
artistas servem-se de diversas formas e meandros sinuosos; as rodas são
concebidas como um movimento ascendente da terra; as árvores definem-se
menos por seu contorno estático que por sua estrutura, que revela o ritmo de
seu crescimento. A alternância cósmica de yang e yin, do ativo e do passivo,
transparece em toda forma ou composição. Tudo está em plena concordância com os seis preceitos formulados no
século V de nossa era pelo célebre pintor Hsieh Ho: [1] o espírito criativo
deve identificar-se com o ritmo da vida cósmica; [2] o pincel deve expressar
a estrutura íntima das coisas; [3] a semelhança será captada pelo contorno;
[4] os aspectos particulares das coisas serão expressos pelas cores; [5] os
agrupamentos devem ser ordenados segundo um plano; [6] a tradição deve
perpetuar-se em seus modelos. Estes princípios revelam claramente que o que
está na base de toda obra é o ritmo e sua expressão imediata, a estrutura
linear, e não o plano estático e os contornos plásticos das coisas, nos
quais se apóia a pintura tradicional do Ocidente. A técnica da pintura a nanquim desenvolveu-se a partir da escrita
chinesa, que por sua vez deriva de uma verdadeira pictografia. O calígrafo
chinês maneja seu pincel sem apoiar a mão ou o braço, modulando o traçado
por um movimento que parte do ombro. Esta prática confere à pintura seu
caráter ao mesmo tempo fluido e conciso. Esta arte não conhece o rigor da
perspectiva, centrada em um único ponto; o espaço é sugerido por sua espécie
de "visão progressiva": ao se contemplar uma pintura "vertical", suspensa na
parede à altura de um observador sentado, os olhos como que "escalam" os
graus de distância que se estendem de baixo para cima; diante das pinturas
"horizontais", a contemplação se desenrole linearmente, e o movimento do
olhar segue o mesmo sentido. Esta "visão progressiva" não separa
inteiramente o espaço do tempo e, por esta razão, está mais próxima da
realidade vivida que as perspectivas artificialmente centradas em um só
"ponto de vista". Ademais, todas as artes tradicionais, quaisquer que sejam
seus métodos, tendem à síntese de espaço e tempo. Ainda que a pintura
tao-buddhista não indique a claridade pelo jogo de luz e sombra, suas
paisagens são, entretanto, plenas de uma luminosidade, que invade todas as
formas como um oceano celeste de nácar resplandecente: é a beatitude do
Vazio, que é luz pela ausência de toda obscuridade. [...] Um pintor japonês ou chinês nunca representará o mundo como um
cosmo acabado, ou uma obra fechada, e neste aspeto sua visão das coisas é a
mais diferente possível da de um ocidental, mesmo daquele ocidental de visão
tradicional, que sempre concebe o mundo de uma maneira mais ou menos
"arquitetônica". O pintor do Extremo Oriente é um contemplativo; para ele, é
como se o mundo fosse feito de flocos de neve, que subitamente se
cristalizam e se dissolvem com a mesma rapidez: sempre consciente do
não-manifestado, os estados físicos menos solidificados são, para ele, mais
próximos da realidade subjacente aos fenômenos; eis o sentido desta
observação sutil da atmosfera que admiramos na pintura chinesa, a nanquim e
aquarela. [...] A própria técnica da pintura a nanquim, com sua caligrafia de
signos fluidos, que só se cristalizam com perfeição pelo efeito de uma
intuição superlativa, correspondente ao "estilo" intelectual do buddhismo
Zen, que busca provocar, por meio de todos os recursos possíveis, após uma
crise interior, a súbita compreensão, o eclodir da iluminação, o satori
dos japoneses. Assim, seguindo o método Zen, o artista deve exercitar-se na
caligrafia pictórica até dominá-la, e logo, abandoná-la, esquecê-la por
completo. De modo análogo, o pintor deve concentrar-se em seu tema e, então,
desligar-se dele; somente assim a intuição poderá agir sobre seu pincel.
Deve-se ressaltar que este procedimento artístico é muito diverso daquele
adotado em outro ramo da arte buddhista do Extremo Oriente, a saber, a arte
hierática, cujos modelos derivam da Índia, e que se concentra na imagem
sagrada do Buddha. Longe de pressupor sempre uma intuição súbita e
ocasional, a criação de um ícone ou de uma estátua do Buddha baseia-se
essencialmente na fiel transmissão dos protótipos; é sabido que a imagem
sagrada compreende proporções e sinais especiais atribuídos pela tradição ao
Buddha histórico. A eficácia espiritual desta arte é salvaguardada pelo
caráter unívoco e quase imutável de suas formas. A intuição do artista pode
ressaltar algumas qualidades implícitas dos modelos, mas a fidelidade à
tradição e à fé serão suficiente para perpetuar a qualidade sacramental da
arte. As duas formas de arte acima citadas apresentam este traço comum,
ou seja, ambas exprimem, fundamentalmente, um estado do ser que repousa em
si mesmo. Este estado é sugerido, na arte hierática, pela atitude do Buddha
ou do bodhisattva, e por suas formas impregnadas de beatitude interior; já a
pintura de paisagens expressa este mesmo estado por um conteúdo "objetivo"
da consciência, isto é, a visão contemplativa do mundo. (Titus Burckhardt, A Arte Sagrada no Oriente e no
Ocidente) Se praticarmos a iluminação suprema com o corpo, estaremos
observando os preceitos. Se os expressarmos com a boca, isso será o Dharma.
Se o praticarmos com a mente, então será o Zen. Ainda que possa ter três
diferentes funções, seu propósito é o mesmo. O rio Huai e rio Han têm nomes
diferentes, mas não é diferente a natureza de suas águas. Os preceitos não
são diferentes do Dharma, que é o mesmo que o Ch'an. Se o corpo, a
fala e a mente forem exercitados em conjunto, os três estarão unidos no
coração. (Wei-k'uan, citado por Hsing Yün em Contos Ch'an) No buddhismo Zen há um ritual para se entrar no caminho de Buddha.
Consiste em expressar o arrependimento informal, em buscar refúgio no
tesouro triplo e em jurar praticar os três preceitos coletivos puros e os
dez preceitos proibitivos. Esse ritual baseia-se na idéia de arrependimento,
que significa, no buddhismo, total abertura de coração. se nos abrirmos
completamente, consciente ou inconscientemente, estamos prontos para ouvir a
voz silenciosa do universo. [...] No ritual de arrependimento informal, cantam-se os seguintes
versos: "Todo o karma continuamente criado por mim desde os tempos antigos,
por meio da cobiça, da raiva e da auto-ilusão que não tem princípio, nascido
de meu corpo, de minha fala e de minha mente, agora eu o confesso, com toda
a sinceridade." No buddhismo, arrependimento não significa pedir desculpas a
alguém por algum erro ou engano. O arrependimento não é um estágio
preliminar para entrar no mundo de Buddha ou para se tornar uma boa pessoa.
Se o arrependimento for interpretado desse modo, caímos, simplesmente, na
armadilha do dualismo; uma grande lacuna é criada entre nós e o objeto, seja
ele qual for, de que estamos tentando nos arrepender, e isso sempre causará
certa confusão. A paz verdadeira não pode ser encontrada no dualismo. No
buddhismo, arrependimento significa nós mesmos nos deixarmos conduzir para
estarmos presentes bem no centro da paz e da harmonia. Ele é a abertura
total de nosso coração, que nos permite ouvir a voz dos limites de
irradiação de nossa consciência. O próprio arrependimento torna nossa vida
perfeitamente pacífica. [...] O tesouro triplo — "busco refúgio no Buddha, busco refúgio no
Dharma, busco refúgio na Sangha" — é a base dos preceitos buddhistas. Os
preceitos, no buddhismo, não são um código moral que alguém ou alguma coisa
exterior a nós mesmos nos obriga a seguir. Os preceitos são a natureza de
Buddha. [...] Os três preceitos coletivos puros, abstenção de tudo o que é
mau, de tudo o que é bom, purificação da mente, são os ensinamentos de todos
os buddhas. As duas primeiras normas, abster-se de tudo o que é mau e
praticar tudo o que é bom, são preceitos. A terceira norma, purificação da
mente, consiste em ter fé sincera no tesouro triplo. Buscar refúgio no
Buddha, no Dharma e na sangha significa purificar a mente. [...] Os dez preceitos proibitivos são: abstenção de tirar a vida;
abstenção do roubo; abstenção do adultério; abstenção da mentira; abstenção
do tóxico; abstenção da fala enganosa; abstenção do auto-elogio por meio da
calúnia contra os outros; abstenção da avareza na outorga do Dharma;
abstenção da ira; abstenção de injúria contra o tesouro triplo. (Dainin Katagiri, Retornando ao Silêncio) Dizemos que há um modo Rinzai e um modo Sôtô, a prática Hinayana e
a prática Mahayana, o buddhismo e o cristianismo. Contudo, se você praticar
qualquer um deles, como se estivesse saltando de um lado para outro do
universo, nenhum o ajudará muito. Se tiver a compreensão correta de sua
prática, tanto faz se tomar um trem, um avião ou um navio, você apreciará a
viagem. (Shunryu Suzuki, Nem Sempre É Assim) Um monge perguntou para o mestre, "Mestre, por favor, me ensine o
segredo do buddhismo." "Ah sim, mas hoje tem muita gente, quando tiver mais ninguém, vou
te ensinar", disse o mestre. No dia seguinte, o monge chegou de novo, "Mestre, tem mais ninguém,
me ensine agora." "Ah, vem cá." E foi para o jardim. Aí o mestre disse: "Está vendo? Esta árvore é alta e aquela outra é baixa. Este é que
é o segredo do buddhismo." Ler obras espirituais nos faz evoluir espiritualmente. Leia nossos textos para sua evolução espiritual, eles são espirituais, ou uma sugestão de luz: leia um texto nosso semanalmente. Conheça o texto: Como Evoluir Espiritualmente. |